Suzana Herculano-Houzel

Bióloga e neurocientista da Universidade Vanderbilt (EUA).

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Suzana Herculano-Houzel
Descrição de chapéu Mente universidade

Quem você espera que vá querer ser cientista?

O salário, digo, bolsa, teve seu primeiro reajuste e continua precário

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Teve quem me detestasse quando perguntei publicamente aos jovens, dez anos atrás, se eles queriam mesmo ser cientistas. Volto à carga, mas com novo alvo: você, brasileiro não-cientista, que se sente protegido por vacinas contra Covid inventadas e produzidas em tempo recorde, que tem esperança de envelhecer sem Alzheimer, que acha ótimo ter um remedinho pra fazer sua dor de cabeça ir embora, que curte usar o celular para falar com a família do outro lado do mundo e para ver televisão, e quem sabe vai até ser poupado por uma nuvem de poeira lunar da angústia do aquecimento global —e que não tem o menor interesse, muito obrigada, de virar cientista você mesmo.

Porque cogitar virar cientista é considerar se prontificar a ser, por uma geração, um dos raros portadores do conhecimento acumulado pela humanidade —e gerador de mais conhecimento, tanto imediatamente aplicado quanto básico, do tipo que só um dia se descobre para quê serve. Tem que escrever relatório e fazer prova o tempo todo, e se não é mais valendo nota, é valendo vida. Quem quer a responsabilidade? Você é que não.

Cientista com macacão e capacete de isolamento estuda amostras do coronavírus em laboratório da USP
Cientista do Instituto de Ciências Biomédicas da USP trabalha na identificação de moléculas que ajudem a combater o vírus da Covid-19 - ICB-USP/Divulgação

O trabalho não respeita horário, porque o cientista está por definição sempre defasado e as novas questões e preocupações são inesgotáveis: coisa de hidra que perde uma cabeça aqui pra brotar não uma outra, mas logo seis ali, porque o resultado de todo bom trabalho de pesquisa é uma questão resolvida e outras tantas novas, que não se sabia que existiam. Não poder lavar as mãos do trabalho às 5h da tarde de sexta e só voltar a pensar a respeito na segunda-feira? Cruz credo.

A formação é intensa e quatro anos de faculdade não bastam, então o título e os direitos de "trabalho" com muita sorte só vêm uns oito anos mais tarde. O salário se chama "bolsa", e a família toda passa oito anos perguntando por que o jovem cientista "ainda está só estudando e não trabalha". De fato, o valor da bolsa de doutorado, reajuste recente de 40% e tudo, mal passa dos R$ 3.000, então não dá nem pra pagar o aluguel sozinho. Pra se dar ao luxo de querer ser cientista, só tendo papai e mamãe para dar casa e comida. Você é mais esperto: mal se formou e já está empregado de verdade, com salário de verdade, pode pensar em família e até viagem de férias.

Aliás, você é esperto mesmo, porque ainda que o cientista ganhe salário de verdade, seus esforços e sucesso são irrelevantes: bons cientistas no Brasil aspiram a trabalhar para o governo, então o valor da sua remuneração é o que é, por tabela. O quê? Nada de negociação, aumento por desempenho ou bônus de Natal? Nem pensar!

Você não vai ser cientista, claro que não. Sem problemas: a sua vacina já está resolvida, então quem precisa de jovens querendo virar cientistas hoje não é você, mas seus filhos e netos amanhã.

Então descanse, diga que está ótima a "correção quase que pela inflação" do valor das bolsas que os atuais cientistas desempregados acabaram de ganhar —eles deveriam se dar por contentes por estarem recebendo para estudar, e, afinal, há tanta pobreza no Brasil!— e não se importe que não vai ter cientista para criar vacina para os seus netos. É como aquecimento global: problema deles, não?

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