Tatiana Prazeres

Executiva na área de relações internacionais e comércio exterior, trabalhou na China entre 2019 e 2021

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Descrição de chapéu China Brics

Fim da pobreza na China, ceticismo e dor de cotovelo

Tão previsível quanto a comemoração do governo é a crítica que virá

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Março de 2020. O mundo entra em "lockdown", a epidemia vira pandemia e subverte planos de governos mundo afora. Xi Jinping faz um anúncio na televisão. Confirma que, apesar das dificuldades, não abrirá mão do objetivo de eliminar a pobreza na China até o final do ano.

Havia ainda 5,51 milhões de chineses vivendo na pobreza no fim de 2019, segundo as contas oficiais. O grosso do trabalho já havia sido feito —mais de 850 milhões de pessoas saíram da pobreza na China desde 1978, segundo o Banco Mundial. Mas a tarefa ainda não estava concluída, e o plano de Xi seria mantido.

Tão certa quanto a festa para comemorar a erradicação da pobreza neste mês é a chuva de críticas que o anúncio provocará.

Mulher costura em estação de erradicação da pobreza em Yunnan, na China - Wang Guansen - 13.nov.20/Xinhua

Muitos destacarão a instrumentalização do fim da pobreza para fins políticos. O Partido Comunista Chinês certamente apresentará o feito com grande destaque na festa do seu 100º aniversário, em 2021. Sinal da superioridade do modelo chinês e da liderança competente do partido, dirão. Fora da China, até aqueles que admiram o feito se incomodam com a narrativa.

Muitos, claro, questionarão o resultado em si. Colocarão em dúvida o critério para a definição de pobreza. Destacarão que a campanha é focada na China rural. E alegarão que as autoridades vão precisar arredondar os números para poder cantar vitória, num ano em que o crescimento foi engolido pela pandemia.

A discussão sobre o feito é válida —os ex-pobres efetivamente deixaram de ser pobres? Apesar de ter oficialmente superado a pobreza, uma massa muito grande de pessoas segue vivendo em condições duras.

Entre 1,4 bilhão de chineses, 600 milhões vivem com até 1.000 yuans (cerca de R$ 798) por mês. Melhorar a vida dessas pessoas é o próximo desafio, reconheceu o primeiro-ministro Li Keqiang. É muita gente —quase três vezes a população do Brasil vivendo com baixa renda. Mas daí a desconsiderar os ganhos que tiveram é outra história.

Na China, o principal antídoto contra a pobreza foi seguramente o crescimento econômico. Mas ele não conta toda a história.

Como de costume, a política pública aqui é encapsulada num slogan: no caso, a campanha 1-2-3. Apesar do título escolar, a tarefa é monumental. Trata-se, número 1, de garantir renda mínima aos necessitados. Pelo chamado dibao, o governo arca com a diferença entre a receita do indivíduo e o valor arbitrado localmente como linha de pobreza.

O ponto 2 refere-se a afastar duas preocupações —o que comer e o que vestir. Por fim, seriam 3 garantias: saúde, educação e moradia básicas. Na campanha antipobreza, 9,6 milhões de pessoas teriam sido deslocadas para complexos residenciais construídos pelo governo. Evidentemente que esses esforços são sujeitos a críticas —mas é difícil negar o avanço.

Em janeiro, como sugeri aqui, independentemente do que acontecesse, haveria comemoração no final do ano. Pois nem uma pandemia adiará o anúncio tão aguardado pelas autoridades.

Questionar critérios e dados, avaliar a situação dos ditos resgatados da pobreza —tudo isso é absolutamente legítimo. Ocorre que, por vezes, esse ceticismo serve para tirar o foco da própria complacência em relação à pobreza. Não custa lembrar, o Banco Mundial estima que a pandemia pode levar até 150 milhões de pessoas à extrema pobreza no mundo até 2021.

A ousadia de pensar grande e eleger o fim da pobreza como meta tem enorme valor. Fico me perguntando se não há uma certa dose de dor de cotovelo entre os céticos do progresso que, ao menos nesta área, a China conseguiu realizar.​

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