Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu

A fogueira e as vaidades

Faltou humanidade, os jornais vendiam tragédia como se fosse Carnaval

Famílias desabrigadas após desabamento de prédio acampam no largo Paissandu, no centro de São Paulo
Famílias desabrigadas após desabamento de prédio acampam no largo Paissandu, no centro de São Paulo - Robson Ventura/ Folhapress

O noticiário da manhã informava que o prédio era da década de 60. Para lá foram 57 viaturas e 160 bombeiros. Eram 24 andares e um terreno de 660 metros quadrados. Tinha uma área construída com pouco mais de 11 mil m². O acidente começou 1h30 da manhã. O edifício desabou às 2h50. Outros três prédios também pegaram fogo. Moradores eram aproximadamente 248. O vídeo mostrava crianças assustadas e suas mochilinhas, algumas deitadas no asfalto imundo, as bochechas ainda enegrecidas pela fumaça... mas da boca dos repórteres só saiam números e mais números.

Invadido, ilegal, irregular, desativado, loteado, ocupado, pago, criminoso, bandido, facção... essas foram algumas das duras palavras que chegaram aos nossos ouvidos muito antes de outras como vítimas, famílias, tragédia, desigualdade, tristeza, solidariedade, comida, cama, água, abrigo.

Preenchendo o buraco, adornando os escombros, ressurgido das cinzas, subiu a poeira dourada da vaidade. Para começar, a minha, que em vez de estar lá tentando ajudar alguém, estou aqui, escrevendo essa coluna para ser lida e comentada. Quiçá, adulada.

Ricardo sem sobrenome (o rapaz engolido pelo fogo, o homem da vinheta fúnebre repetida ad infinitum numa espécie de pesadelo sensacionalista) passou boa parte do noticiário também sem nome. E, assim que foi “reconhecido”, virou a nova febre das redes sociais, a galera “de bem” resolveu não lamentar 
sua morte porque “devia ser um bandido”. Não demoraram a postar fotos incriminatórias. Para que vamos lamentar humanos desabrigados (talvez mortos de forma terrível) se podemos ocupar todo o nosso tempo xingando todos os movimentos populares em nossas pracinhas virtuais? Não estou aqui defendendo o Luta por Moradia Digna, só acho estranha a escolha pelas paixões. Pra que exercer a compaixão quando podemos incitar mais ódio?

A repórter que cobria a tragédia logo cedo estava maquiada para além do que seria mau gosto. Os olhos com uma sombra preta exagerada e a base muito pesada não ornavam com o conteúdo apresentado. “E, ao vivo, estamos com nossa repórter no local do desastre”. E lá vinha ela, sorridente, os cílios alongados, o batom chamativo. Me lembrou aquela “modelo” que fazia fotos sensuais com os danos do furacão Sandy.

 
 

À noite, no mesmo canal, um repórter mostrou uma montanha de roupas doadas e falou “as pessoas vêm aqui, pegam o que lhes interessa, e largam o resto”. Ele foi expulso aos berros por um dos ex-moradores que acabara de perder o pouco que tinha. A barriga provavelmente forrada apenas pelos ecos do imenso susto e alguns farelos de bolacha água e sal vencida, não dava para aturar o jovem engomadinho mostrando sua realidade triste e precária como se analisasse o comportamento de ratos em um laboratório a céu aberto.

Faltou humanidade, amigos jornalistas. Vocês pareciam estagiários perdidos vendendo fatalidade como se fosse Carnaval de rua. 

Engrossando o coro de quem substitui o verbo sensibilizar por ostentar, nosso presidente só visitou o local porque pegava mal não dar um pulo na desgracinha dos pobres. Temer não estava preocupado com as famílias que não teriam onde dormir aquela noite (e sabe Deus mais quantas noites!), ele estava agoniado em não “ficar feio na foto” (como se fosse possível a ele ficar bonito de qualquer forma em qualquer foto). 

No Facebook, muitos conhecidos que moram na zona oeste, em horrendos e caros prédios neoclássicos, se marcaram como “seguros” no acidente com o edifício no largo do Paissandu. Oi? Querido, você mora em Pinheiros, não precisa avisar que está tranquilo no trabalho ou de bobs em casa, ninguém estava mesmo preocupado! 

O prédio não tinha condições de abrigar aquelas famílias e nós não temos condições de sequer lamentar por isso.

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