Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu Governo Bolsonaro

Bolha do amor

Agarra na mão dos 30 que sobraram depois da limpa nas rede sociais

Na noite do último domingo, assassinaram meu cinismo. Nunca fui muito da poesia, das declarações de amor, das comemorações infinitas dos "mesversários" dos bebês. Tirando aquela vez no colégio em que um menino muito bonito se apaixonou por mim (por dois dias) e outra em que finalmente tive um aumento salarial decente, nunca fui de andar cantarolando pelas ruas, com vontade de abraçar as pessoas ou ouvir sem espírito zombeteiro o que elas têm a dizer.

Faço mais o tipo que acha todo mundo chato até que se prove o contrário. Chego aos lugares desesperada para me retirar. Combino as coisas só para ter o imenso prazer de desistir em cima da hora. Dou a volta com o carro na quadra de casa esperando as visitas irem embora. Considero um almoço com mais de três pessoas um atentado contra o bom humor.

Porém, no último domingo, abateram meu cinismo. Quando vi, estava mandando aquele desenho "ninguém solta a mão de ninguém" até para o meu urologista. Eu queria tocar a campainha da vizinha levando uma flauta mágica e entoar uma linda canção do bem-estar supremo até que ela dormisse sem medo do futuro. Socorro! Ainda bem que não tenho flauta e minha vizinha estava na praia.

Imagem que viralizou nas redes sociais após a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) "Ninguém solta a mão de ninguém"
Imagem que viralizou nas redes sociais após a eleição de Jair Bolsonaro (PSL) "Ninguém solta a mão de ninguém" - Reprodução

A onda de violência, preconceito, egoísmo e estupidez que se anuncia (ou que já começou, mas é difícil admitir) me deu vontade de planejar um café da manhã ensolarado no jardim da minha casa para mil pessoas maravilhosas. Todos com flores na cabeça. Eu descalça, tocando violão numa roda, assoprando um dente-de-leão. Socorro! Ainda bem que não tenho jardim nem violão nem tempo pra isso. Ah, e tá difícil encontrar mil pessoas incríveis. Agarra na mão dos 30 que sobraram depois da limpa nas redes sociais e segue o barco.

Fiz grupos fechados nas redes sociais e os nomeei "Bolha do amor". Ah, mas isso não é democrático. Dane-se! Ah, mas você tem que saber respeitar quem pensa diferente de você. Caguei! Ah, mas não dá pra viver numa bolha com pessoas que batem palminhas para tudo o que você pensa. Foda-se! Ah, mas a Juju era tão sua amiga e a única que estava ao seu lado quando você se deprimiu há três anos. Vá à merda, Juju reaça! Deprimida eu tô é agora com a irracionalidade que emana do seu cérebro com pouca leitura.

Eita, sua doida, mas você disse que não era mais cínica e, pra piorar, vem agora com esses palavrões! Pois é. Não vou ficar postando foto da minha família ou da minha cachorra vestida de dinossauro para quem repercute discurso de ódio. Não orna. Eu coleciono palavras e imagens bonitas demais para ostentá-las numa pocilga chique de porcos com babyliss.

Domingo eu estava em pé, no meio da sala, chorando com o professor que nos mandava ter coragem: "Não tenham medo, nós estamos aqui". Tentei rezar, mas, antes da fala do professor, as pessoas mais ridículas estragaram por um tempo a real intenção de uma reza. Coloquei Renato Russo no fone de ouvido e chorei mais um pouco: "Vamos celebrar nossa bandeira/nosso passado/de absurdos gloriosos/celebrar nossa saudade/comemorar a nossa solidão". 

No último domingo, talvez meu cinismo não tenha morrido, posto que preciso dele para rir um pouco e não sucumbir, mas ele deu lugar a uma vontade infinita de abraçar desconhecidos aleatórios, como o vovozinho de suspensório na banca de jornal. Fui chegando perto, e ele falou: "A Folha não!". Quem diria, a Folha, o William Bonner, o Felipe Neto? A gente perde amigos de uma vida inteira, perde vovôs fofos de boinas, mas volta a ter esperança em cada lugar estranho!

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