Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu É Coisa Fina feminicídio

'Recordações da Minha Inexistência' é como ter o peito rasgado por mãos femininas

Este livro é para toda mulher que está exausta de ser tratada como se existir de verdade fosse agressão à feminilidade

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Recordações da Minha Inexistência

  • Preço R$ 64,90
  • Autoria Rebecca Solnit
  • Editora Companhia das Letras (264 págs.)

O que eu queria mesmo agora era ficar um tempo deitada, só me recuperando desse livro e rearranjando as coisas dentro de mim. Mas preciso entregar esta resenha a tempo de dizer que, mais uma vez, Rebecca Solnit me arrebatou.

Ler “Recordações da Minha Inexistência”, que acaba de ser lançado pela Companhia das Letras, é como ter o peito rasgado por muitas mãos femininas, generosas e firmes. Para além do mero entretenimento que é deleitar-se com ensaios brilhantemente bem escritos, o que acontecerá com a leitora (eu me recuso a usar o masculino genérico aqui: “se homens são todo mundo, então as mulheres são ninguém”) deste livro de memórias se aproxima muito mais de um cateterismo feito às pressas. Incomoda para além do gênero e do trauma, mas é algo que precisamos fazer para desentupir veias e sobreviver.

Como uma garota magricela que desmaiava e achava que ia desaparecer, que não ganhava peso justamente para não chamar a atenção —e apanhar do pai ou ser abusada por adultos na adolescência—, se torna uma escritora feminista dessa potência?

Aclamada mundialmente pelo livro “Os Homens Explicam Tudo para Mim”, sua narrativa e luta a favor da “audibilidade, credibilidade e relevância” de mulheres serviram de inspiração para o nascimento do termo “mansplaining”. E, quando tentaram tirar a importância do seu relato, dizendo ser essa uma guerra menos urgente perante, por exemplo, o feminicídio, ela conclui que é possível falar de muitas pautas ao longo de um espectro: “obrigar pessoas negras a beber água em bebedouros separados e linchar os negros são coisas diferentes em grau e em tipo, mas ambas surgem do mesmo empenho
de forçar a segregação e a desigualdade […]”.

Este livro é para toda mulher que está exausta de ser tratada como se existir de verdade fosse uma agressão à feminilidade; para toda garota que está cansada de se olhar no espelho pensando o que os homens achariam dela e de atuar até não saber mais quem é —chegando mesmo a desaparecer a si mesma “nessa arte de aparecer para os outros”. Estes ensaios são para toda leitora que segue na linha tênue entre demonstrar o interesse sexual por alguns homens e, ao mesmo tempo, ter que se proteger sexualmente de muitos outros que não deseja.

Talvez você pegue um tremendo bode do Kerouac e de todos os homens beatniks após ler esse livro. Talvez pense no punk rock como uma cena bastante machista, apesar de as letras das músicas terem lançado Rebecca a um desejo bastante urgente de se expressar. Certamente você vai ficar encantada com as histórias sobre uma San Francisco acolhedora: “a cultura gay foi um baluarte contra a insistência, generalizada e cansativa, em proclamar que apenas a família nuclear fornece amor e estabilidade”. E vai ser impossível não se emocionar ao pensar que a escrivaninha em que a autora escreveu boa parte de seus textos foi presente de uma de suas melhores amigas, que há pouco havia sido esfaqueada por um namorado: “alguém havia tentado silenciá-la. Ela me deu, então, uma plataforma para minha voz”.

Solnit acredita que o único jeito de lidar com as piores coisas é enfrentá-las: “durante muitos anos li repetidamente sobre estupros no meu café da manhã, sobre espancamentos e perseguições no almoço e tive assassinatos para o jantar”. Apesar do medo de caminhar pelas ruas, ela jamais deixou de peregrinar atrás de histórias e da própria biografia.

Rápida, inteligente, afiada, divertida… e tendo que carregar o peso e a dor de uma “armadura de 500 quilos”, Rebecca diz que um dos seus maiores aprendizados foi falar com o coração e abrir mão das ironias que tinha o hábito de imitar vendo o comportamento da sua família.

Ao se perguntar se a imortalidade a seduziu para se tornar uma escritora muito lida, Solnit conclui que sucesso mesmo tem o texto que se torna obsoleto: “um trabalho que acaba sendo absorvido tão profundamente que deixa de ser aquilo que as pessoas veem e se torna a maneira como elas o veem”.

Por último, uma frase que vou carregar para sempre comigo: “tornar-se escritor formaliza algo essencial que faz parte de se tornar um ser humano”. Para não desaparecer, Rebecca parece ter inventado, finalmente, todas as mulheres que a leem.

Capa do livro 'Recordações da Minha Inexistência', de Rebecca Solnit
'Recordações da Minha Inexistência', de Rebecca Solnit - Reprodução

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