Tati Bernardi

Escritora e roteirista de cinema e televisão, autora de “Depois a Louca Sou Eu”.

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Tati Bernardi
Descrição de chapéu maternidade

Quando o obsessivo tem um filho

Algo sem nome dentro da parte sem nome do meu pensamento pensa

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Você abre os olhos e enxerga um rastro de sangue. Quem está ferido? Ah sim, lembrei. Sou eu. Não minha pele, mas a película fina que separa minha mente neurótica obsessiva de uma frigideira imaginária pronta a fritar meus delicados alicerces psíquicos. Essa fronteira está sangrando, implorando: psicanalistas, por favor, parem de pensar só o que fazer quando o filho dá escândalo, bate, quer dormir na cama dos pais ou pergunta por que o papai só tem um negócio murcho e pendurado no meio das pernas se a mamãe tem dois negócios murchos e pendurados entre os ombros. Parem. Chegou a hora de a atenção de vocês se voltar para algo mais sério: o adulto que sente vontade de morrer (e aqui não estamos lidando com nenhum recurso linguístico hiperbólico) quando vê qualquer coisa fora do lugar ou suja ou quebrada ou sem tampa. E esse adulto tem um filho que tira coisas do lugar e suja e quebra e tira tampas o dia inteiro.

Meu analista achou que eu poderia tentar diminuir o antidepressivo. Meu psiquiatra falou: "Podemos tentar, é claro, e daí, qualquer coisa, veja bem…". O clínico geral considerou: "Olha, vai te desinchar certamente". E daí eu diminui e daí eu comecei a notar a diferença milimétrica de altura e de espaços entre as portas dos armários e das gavetas. O marceneiro me bloqueou no WhatsApp. Os tapetes do banheiro não ficam retinhos. E tudo bem. Você não vai se atrasar por causa disso, certo? Mas não custa colocá-los milimetricamente e impecavelmente alinhados, certo? Já que isso vai diminuir minha angústia. E então entra minha filha com seus patins. Depois com sua bicicleta. Depois com seu pogobol. E os tapetes estão agora rodando, dançando, milimetricamente e infinitamente perdidos num espaço onde se abriram 786 mil janelas de coisas que precisam ser arrumadas, resolvidas, alinhadas, limpas e organizadas. E se eu parar para entrar em apenas uma dessas janelas, eu não ouvirei minha filha me chamando, me chamando, me chamando. As roupas desarrumadas me enforcam. Os sapatos largados estapeiam minha face. A louça suja se esfrega em minha língua. Não existe Deus.

Louça acumulada na pia - Eduardo Knapp/Folhapress

Não é sangue. É a tinta vermelha que a minha filha usou para desenhar, mas algo sem nome dentro da parte sem nome do meu pensamento pensa: "Vai começar a carnificina". É sangue. A tampinha da Pritt ali, solitária. Ao lado dela, a cola seca, pois passou a noite destampada. Assassinaram a cola.

Coisas maiores com coisas menores e uma planta e uma vela e um vaso. Olha, ficou bonito mesmo, hein? Já posso ser amada em minha casa de adulto? Já tem a mãozinha dela carimbando a parede. Já tem mais brinquedo no chão do corredor do que você tem de vida ganha no videogame da sua lombar.

Essa crônica é pra você, que poderia passar 28 horas enfileirando objetos numa estante e só quando já estivesse todo esse tempo sem beber água, sem comer, sem urinar, sem deitar, sentiria que é melhor parar pra não morrer de hipoglicemia ou artrite existencial. Essa crônica é pra você, que tem uma lista infinita de livros pra ler e acredita que vai ler todos e ao final deles será alguém e será aceito e será amado. Só neste final de semana 56 livros, porque é assim que foi organizado na sua luta pela não castração. E entregar tudo no prazo. E se exercitar e comer bem e performar sexualmente e ter 78 projetos de sucesso e colocar fios de não sei o que pra levantar a pelanca da cara de buldogue. Não vai rolar.

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