Terra Vegana

Luisa Mafei é culinarista e professora de cozinha a base de vegetais

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Descrição de chapéu alimentação

É possível ser uma vegana imperfeita?

Se o veganismo não permite momentos de exceção, já não posso afirmar que sou vegana

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O veganismo permite espaço para a inconstância? Para as exceções que inevitavelmente vão acontecer na vida de um indivíduo que vive numa sociedade que não é vegana?

Se eu me permitir comer o arroz doce que o meu pai faz, uma vez por ano, quando eu for ao Brasil, visitar a minha família, deixarei de ser vegana? Se eu distraidamente comer a bolacha que acompanha o café, antes de perguntar ao garçom se ela tem ovo, manteiga ou leite, deixarei de ser vegana? Se, numa viagem, eu quiser muito experimentar um pão típico que só não é vegano pela pincelada de gema que leva, deixarei de ser vegana?

Esses questionamentos já me acompanham há alguns meses —ou melhor, há pelo menos um ano, quando o meu filho nasceu.

Em meio a todas as nuances do puerpério e a consolidação da maternidade, me conectei com a criança que eu fui. Uma criança que adorava cozinhar receitas que levavam ovos e leite. Entre bolos, mousses e pãezinhos de queijo, crescia uma menina que se divertia em observar a transformação dos ingredientes em algo totalmente novo, e delicioso.

Voltei a sentir vontade de comer esses e outros quitutes sempre que adentrava um café, com o meu recém-nascido no colo, dormindo, sem nunca ter me permitido pedir um docinho para equilibrar o amargor da bebida e das noites mal dormidas. Até o dia em que me permiti. Deixei de ser vegana? Quantas vezes eu posso me permitir abrir uma exceção e ainda assim ser vegana?

O nome do meu projeto nas redes sociais é "Cozinha Afetiva". A comida tem, para mim, o sabor das férias de verão no quintal da casa da minha avó, das noites em que eu e meu irmão esperávamos os adultos irem dormir para comer mais pavê, do bolo de cenoura com chocolate que eu sempre escolhia para cantar os parabéns. E o "afetiva" está ao lado de "cozinha", também, para me lembrar diariamente que minha relação com a comida pode ser saudável, amorosa e respeitosa com a minha própria história alimentar. Se esse respeito não existir, não tenho como estendê-lo aos animais, aos pequenos produtores e ao meio ambiente.

Meu trabalho tem sido, muitas vezes, o exercício de recriar memórias afetivas com a comida, em versões 100% vegetais. E, quanto a isso, nada mudou. Minhas receitas, cursos e conteúdos publicados nas redes sociais vão seguir com o mesmo foco na cozinha vegetal, para todas as idades.

Sinto que a alimentação a base de vegetais é a melhor escolha que podemos fazer pela nossa saúde, pelo meio ambiente e pelos animais. E, mesmo com toda a certeza de que o reino vegetal é fantástico, e que nos permite recriar inúmeros pratos da nossa memória afetiva, sinto que não consigo mais, nesse momento, sustentar o meu veganismo.

O veganismo não é uma dieta —essa frase, tão difundida pelo movimento vegano, traz à tona a sua dimensão política e ética, que vai para além do prato. Ironicamente, para mim, nos últimos meses, o veganismo tem sido uma dieta dentro da qual eu não posso abrir exceções, porque se eu abrir… eu vou sair da dieta. Eu vou deixar de ser vegana.

A dieta não permite o imperfeito. O "hoje eu tentei, mas não consegui". Por muitos anos eu vivenciei o veganismo com o sentimento de liberdade e de inclusão no meu prato. Mas, de uns tempos para cá, tenho sentido que preciso ser muito rígida comigo mesma para conseguir ser vegana, e essa rigidez tem me trazido consequências.

Tive recaídas em episódios de compulsão alimentar que já não se faziam presentes havia muito tempo. A cura dos distúrbios alimentares é um permanente estado de alerta e, nesse momento, uma luz amarela se acendeu. É impossível ignorá-la. A Cozinha Afetiva nasceu para acolher cada pedaço que precisava ser costurado ao longo do meu processo de cura, e é impossível lutar pelos animais se eu não conseguir, primeiro, cuidar de mim mesma. E se consigo, enfim, falar sobre esse momento, é porque agora estou bem, estável e segura em relação às minhas escolhas.

A maternidade mexeu com algumas das minhas convicções mais profundas. Ainda na gravidez, nunca senti a necessidade de afirmar que o meu filho seria vegano, por compreender que essa teria de ser uma escolha (ou não) dele. Agora que ele já é um bebê de um ano e que tem feito todas as refeições à base de vegetais conosco em casa, eu começo a imaginar situações que vão surgir conforme o passar do tempo.

Se eu optar por não preparar uma marmita com bolo e brigadeiro veganos para o meu filho levar à uma festa que não é vegana, por compreender que momentos de exceção podem existir na alimentação dele: eu deixarei de ser vegana?

Respeito o posicionamento de mães veganas que asseguram uma alimentação 100% vegetal para os seus filhos, muitas vezes com uma sobrecarga física em ter que preparar, a todo tempo, as refeições adaptadas para os momentos de convívio social, ou até mesmo para o almoço na escola. No entanto, eu não me sinto confortável em seguir esse exemplo à risca, porque, na minha experiência, o sentimento de culpa em comer (ou não comer) algo "proibido" quando criança foi um gatilho para desenvolver distúrbios alimentares na adolescência.

Eu não tenho vontade de comer carne, frango, peixe, porco, o que sinto vontade de comer, pontualmente, são comidas que levam ovos ou derivados de leite de vaca. Precisamente, comidas que marcaram a minha infância e que estão nas vitrines dos cafés desse mundo que não é vegano.

Pouco ou nada mudou na minha vida, na minha alimentação e no sentimento que tenho pelos animais. Mas, se o veganismo não permite momentos de exceção na alimentação, já não posso afirmar que sou vegana. Vou seguir contribuindo com tudo aquilo que puder para que mais pessoas experimentem, na cozinha de suas casas, a potência da cozinha vegetal e deixem, assim, os animais de fora do prato.

O veganismo me trouxe amizades, trabalhos (e me tirou outros tantos também, muitos dos quais eu mesma recusei) e um sentimento de compaixão por todos os seres vivos, inclusive por mim mesma e pela minha história alimentar. Ele segue sendo o horizonte em direção ao qual eu seguirei caminhando, ainda que de um modo imperfeito.

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