Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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No Brasil, o racismo judicial é tão antigo quanto o Judiciário

Ao condenar réu por ser negro, juíza expõe a face mais explícita de um racismo recorrente nos corredores da Justiça

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Quem vê raça como critério para imputar crime não pode brincar de julgar negros. Escreve a juíza Inês Marchalek Zarpelon de Curitiba (PR) que o réu Natan Vieira da Paz, um homem negro de 48 anos, “seguramente” integrava a organização criminosa, “em razão de sua raça”. Se raça é importante, pergunto: quantas vezes a magistrada majorou a pena de réus brancos por conta de sua branquitude?

Juridicamente, uma miríade de consequências legais pode advir deste caso. Deveria, ao menos. Magistrados são invioláveis pelo conteúdo de suas decisões, desde que nelas não guardem “intuito ofensivo”, dita a jurisprudência do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O caso levanta questões éticas-disciplinares. O Código de Ética da Magistratura “veda qualquer espécie de injustificada discriminação”, e a Lei Orgânica da Magistratura prevê sanções de advertência a aposentadoria compulsória, analisadas caso a caso e com direito a ampla defesa.

A juíza Inês Zarpelon, que citou raça para condenar réu, em cerimônia no Tribunal de Justica do Paraná em 2016
A juíza Inês Zarpelon, que citou raça para condenar réu, em cerimônia no Tribunal de Justica do Paraná em 2016 - Divulgação/TJPR

Não há só sanções administrativas. A lei antirracismo (7716/89) pune “praticar induzir ou incitar discriminação ou preconceito de raça”, o que tem sido entendido pelo Judiciário como uma ofensa ao grupo racial como um todo, o que pode eventualmente ser o caso se assim for investigado.

A sentença pode ser revista se se entender que lhe faltou fundamentação para a condenação além da questão racial, ainda mais se for verificado interesse da juíza a favor da acusação. Se a justificativa para as desculpas da magistrada é a ambiguidade da sentença, pois bem: que seja anulada, porque ambiguidade serve para inocentar, não condenar.

Esse caso, por envolver a condenação penal em razão da raça, é a face mais explícita do racismo cotidianamente reproduzido nos corredores da Justiça, por vezes menos evidente, mas não por isso menos perverso. Brancos respondem mais em liberdade e são presos em flagrante em menor quantidade, revelam dados da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. A guerra às drogas significa encarceramento em massa de negros e negras, considerados traficantes por quantidades menores de drogas do que brancos, segundo dados da Agencia Pública sobre sentenças em 2017 na cidade de São Paulo.

Nada disso espanta em uma instituição racializada (diga-se, branca). Pretos e pardos compõem apenas 18% do Judiciário brasileiro (1,6% e 16,5%, respectivamente), segundo levantamento do CNJ em 2018. No topo da carreira é ainda pior. Há mais desembargadores chamados Luiz do que há desembargadoras mulheres no TJ-SP, sem contar raça. Contando-a, temos que juízes brancos têm 4,6 vezes mais chance que juízas negras de se tornarem desembargadores, como aponta o estudo JUSTA do IBCCRIM (Instituto Brasileiro de Ciências Criminais). O Judiciário, ainda mais na esfera penal, é uma instituição branca julgando negros.

Racismo judicial não é desvio de conduta, é um projeto político tão antigo quanto o próprio Judiciário. Dina Alves, na obra “Rés Negras, Judiciário Branco” de 2015, expõe as veias raciais e de gênero do judiciário. Dina lembra Raimundo Nina Rodrigues (1852-1906), médico maranhense e um dos expoentes mais racistas de nossa medicina, inspirado nas ideias de Cesare Lambroso (1835-1909), criminologista italiano.

Não é necessário hoje medir os crânios de negros considerados delinquentes natos, como se faziam nas faculdades de medicina e direito no século 19, para expor as entranhas racistas do país. Basta ler Nina Rodrigues nos idos do século 19, para quem “o negro é inferior ao branco, a começar da massa encefálica que pesa menos (...) e essa inferioridade seria irremediável quaisquer que fossem as condições sociais em que se coloque o negro, está ele condenado pela sua própria morfologia e fisiologia a jamais poder igualar o branco”.

Nina Rodrigues não era um ponto fora da curva. Teorias eugenistas do negro como delinquente integraram os currículos das primeiras faculdades de medicina e direito constituídas logo após a independência do país em 1822, nos conta Lilia Schwarcz em “O Espetáculo das Raças”. Os “doutores” e “excelentíssimos” foram os primeiros a construir a ideia eugenista do negro como criminoso, tão logo este país passou a existir enquanto tal.

O racismo é perverso, ademais, porque ofusca as grandes mentes jurídicas negras no Brasil. Tenta, ao menos. Nesta quarta (12), o histórico Grupo de Trabalho de Igualdade Racial no Judiciário do CNJ, iniciativa de juízas e juízes negros e com aliados entre magistrados brancos, passou sete horas debatendo formas de reverter o racismo judicial.

Luiz Gama, que libertou escravizados com a arma que o direito proporcionava, escreve no Correio Paulistano em 10 de novembro de 1871: “Se algum dia os respeitáveis juízes do Brasil esquecidos do respeito que devem à lei, (...) corrompidos pela venalidade ou pela ação deletéria do poder, abandonando a causa sacrossanta do direito, (...) faltarem com a devida justiça aos infelizes que sofrem escravidão indébita, eu (...) aconselharei e promoverei, não a insurreição, que é um crime, mas a ‘resistência’, que é uma virtude cívica”.

O caso de racismo judicial espanta a sociedade porque, explícito sendo, a faz confrontar com o seu pacto racial da cordialidade perversa. Não desmantelaremos essas estruturas, inclusive as menos evidentes, sem a virtude cívica de chamá-las pelo nome que merecem: racismo.

Juíza escreveu que réu era integrante de grupo criminoso por causa da sua raça
Juíza escreveu que réu era integrante de grupo criminoso por causa da sua raça - Reprodução

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