Thiago Amparo

Advogado, é professor de direito internacional e direitos humanos na FGV Direito SP. Doutor pela Central European University (Budapeste), escreve sobre direitos e discriminação.

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Genocida

Polissêmico, o termo genocídio transborda dor coletiva e anseio por responsabilização

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Shakespeare era um cara esperto. Digo, politicamente esperto. Na Inglaterra seiscentista chamar um governante de “tirano” poderia ser punido com a morte. Ciente disso, Shakespeare assegurava que suas peças, em geral, mantivessem “ao menos um século inteiro de distância entre o tempo vivido pelo escritor e os eventos encenados”. Quem nos conta isso é Stephen Greenblatt, autor do delicioso livro “Tyrant: Shakespeare on Politics”, de 2018, sobre o qual já escrevi no jornal. Delicioso e atual.

Quem não tem rainha Elizabeth 1ª, caça com André Mendonça. Eis que rogo ao ilustre subordinado que não é preciso gastar sua caneta de ministro da Justiça para requisitar investigação por ofensa à honra do presidente, posto que não tenho a intenção de fazê-lo. Sem animus, sem crime. Se as atrocidades ditas pelo presidente não o ofendem, o que diremos deste texto polido? Claro, eu poderia ocupar esta coluna inteira com receitas de bolo, mas —veja bem— há quem diga que há um genocídio em curso, e genocídios não combinam com frivolidades culinárias.

Quando o rei assume para si o papel de bufão, sua nudez se torna ofensiva apenas aos olhos dos afoitos servos que querem cobri-la com o manto da censura. O que a polícia política da inconstitucional Lei de Segurança Nacional não vê é que a força do termo genocídio recai, justamente, em seu caráter polissêmico: congrega num único vocábulo nossa dor coletiva por quase 300 mil mortos, nossa ânsia por justiça e o desdém estrutural e intencional pela vida.

Agora que brancos redescobriram um termo já utilizado há décadas por povos indígenas e negros, há de se lembrar que o termo já estava aqui, bem vivo no guarda da esquina. Abdias Nascimento o usou em 1978 em seu clássico livro “O Genocídio do Negro Brasileiro”, e como nos lembra Paulo Cesar Ramos em tese de doutorado defendida na USP este mês, protestos negros, em especial a partir dos anos 2000, têm utilizado o termo em substituição a expressões como discriminação ou violência racial.

Genocídio é um termo político-jurídico. É por causa do uso social do termo que a comunidade jurídica agora lembra que a lei o pune desde a década de 1950. Juridicamente, genocídio significa, entre outros atos, a “sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial, [...] com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso”, pelos termos do Estatuto de Roma, promulgado pelo Brasil em 2002.

Há barreiras para se provar legalmente genocídio, todas elas transponíveis em tese. Uma delas é seu elemento subjetivo: requer dolo específico contra o grupo em questão. Por isso, se diz que no caso de indígenas seria mais plausível prová-lo, basta ver os vetos presidenciais contra medidas protetivas a estes povos e o estímulo à boiada. No caso do crime contra a humanidade, diferentemente do genocídio, esse dolo específico contra um grupo nem sequer é exigido.

Outro ponto é o elemento objetivo do genocídio: onde começa a responsabilidade individual por uma política de Estado? Aqui, a própria lei internacional nos dá pistas. Quem ordena, solicita ou instiga crimes internacionais também os pratica (artigo 25, Estatuto de Roma). Pesquisa da USP e da Conectas de janeiro de 2021 apresenta três eixos que indicam intencionalidade na política de estado: propaganda pró-aglomerações, combate às medidas protetivas de governadores e prefeitos no STF, e um volumoso conjunto de normas e vetos, como o veto à obrigatoriedade do uso da máscara.

Genocídio não é só um crime; é mais que isso: é um grito de nunca mais num país deveras acostumado a políticas de morte em massa. A gramática do genocídio incomoda porque é moldada para o incômodo: é o grito de quem nunca é escutado. Qual dor moverá a justiça: a dor de quem está sufocando em terra firme nos hospitais ou a dor insincera de um presidente que nem se envergonha? Podem 300 mil mortes falar sem a mordaça da censura policial?

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