Descrição de chapéu Folhajus Coronavírus

Bolsonaro genocida é retórica sem base jurídica, dizem especialistas

Erros do presidente diante da Covid, por outro lado, podem resultar em condenação por mecanismos internacionais

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Manifestante em protesto em frente ao Planalto no qual chama o presidente Bolsonaro de genocida

Manifestante em protesto em frente ao Planalto no qual chama o presidente Bolsonaro de genocida Raul Spinassé/Folhapress

Mogi das Cruzes (SP)

O sobrenome Bolsonaro associado ao termo “genocida” se tornou um dos assuntos mais comentados nas redes sociais após o youtuber Felipe Neto ser intimado no início desta semana a prestar esclarecimentos por ter usado o termo para qualificar o presidente da República.

Em Brasília, nesta quinta-feira (18), também com base na Lei de Segurança Nacional, da ditadura militar, manifestantes foram detidos por exibirem desenhos associando o presidente a uma suástica nazista e um cartaz com os dizeres “Bolsonaro genocida”.

No mesmo dia, uma decisão liminar suspendeu a investigação contra Felipe Neto, iniciada a partir de uma notícia-crime apresentada pelo vereador e filho do presidente, Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ).

Especialistas em direito internacional ouvidos pela Folha diferenciam uma eventual criminalização na esfera penal do uso retórico do termo para denunciar omissões e erros do governo Bolsonaro diante do agravamento da pandemia de Covid-19.

O crime de genocídio está definido pela Convenção para Prevenção e Punição do Crime de genocídio como atos com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal.

Esse foi o primeiro tratado aprovado pela ONU, em 1948, em meio à pressão diante do holocausto na Alemanha nazista de Adolf Hitler, que se estima ter matado mais de 6 milhões de pessoas.

Cunhado pelo especialista em direito internacional Raphael Lenkin, o termo genocídio teve a definição reiterada pelo Estatuto de Roma, em 2002, documento que criou o TPI (Tribunal Penal Internacional) para julgar crimes de genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra.

Única brasileira a integrar a corte até hoje, de 2003 a 2016, Sylvia Steiner afirma que não vê paralelo entre as ações do governo federal e o crime de genocídio, que só é considerado quando há comprovação da existência de uma política intencional de extermínio.

“As condutas descritas em lei que sejam praticadas contra um grupo nacional, étnico e religioso e com a finalidade de destruir no todo ou em parte esse grupo. Se não tiver esses três elementos, pode ser qualquer outro crime. Pode ser crime de perseguição, de assassinato, de extermínio, mas não é crime de genocídio”, afirma.

Pessoas vestidas de preto, uma delas com uma fantasia da morte. Ao fundo, uma faixa com os dizeres Bolsonaro genocida
Grupo de manifestantes realiza protesto contra o presidente Bolsonaro em frente ao Palácio do Planalto e cobra mais ação em relação ao combate da pandemia - Raul Spinassé/Folhapress

Pesquisadora da FGV-Direito de São Paulo, ela pondera que a população leiga não tem obrigação de conhecer o termo, que já teve o entendimento pacificado por um conjunto de decisões internacionais. Logo, na visão dela, o termo genocida não se aplica.

“Eu não posso dizer que existe uma intenção dolosa de exterminar a população brasileira ou parte da população brasileira. Acho que aí o uso do termo genocídio é retórica para que todos percebam a gravidade da situação. Isso ninguém pode negar”, diz.

A professora Carolina Claro, do Instituto de Relações Internacionais da UnB (Universidade de Brasília), também diz que é preciso cuidado no uso do termo, mas defende a responsabilização do governo por omissões. Por outro lado, ela afirma que do ponto de vista sociológico o conceito é mais maleável.

“O termo técnico precisa ser usado com cautela, até porque a gente não pode condenar uma pessoa antes de todo o conjunto probatório ser determinado e antes que haja um julgamento justo, mas entendo que o uso dessa palavra tem uma conotação muito mais social e para mostrar que existe um problema”, diz, referindo-se ao uso feito pelo movimento negro e indígena.

Advogada na área de direitos humanos, ela afirma que pelo fato de as condutas na pandemia não serem voltadas para um grupo específico, característica de um genocídio, é mais fácil enquadrar as ações do governo como crimes contra a humanidade, que engloba um rol mais amplo de condutas, dentre as quais a prática de extermínio.

“Talvez falar em crimes contra a humanidade seja um pouco menos impactante, embora igualmente grave, do que usar o vocábulo genocídio”, acrescenta.

O que é Genocídio?

A Convenção de 1948 da ONU e o Estatuto de Roma definem genocídio como atos com intenção de destruir, no todo ou em parte, um grupo nacional, étnico, racial ou religioso, enquanto tal, como:

  • Homicídio de membros do grupo
  • Ofensas graves à integridade física ou mental de membros do grupo
  • Sujeição intencional do grupo a condições de vida com vista a provocar a sua destruição física, total ou parcial
  • Imposição de medidas destinadas a impedir nascimentos no seio do grupo
  • Transferência, à força, de crianças do grupo para outro grupo

Professor da Faculdade de Direito da USP e coordenador de um grupo de estudos sobre proteção de minorias, Paulo Borba Casella também defende a responsabilização de Bolsonaro por crimes contra a humanidade. Na falta de um adjetivo específico para isso, ele diz que não é uma impropriedade usar o termo genocida.

“É uma conduta que não é só omissa. Ela é deliberadamente destrutiva. Aí é que entra a caracterização de genocida. Do ponto de vista de causar dano, está claramente colocado”, afirma, citando tanto os discursos de Bolsonaro contra o isolamento social, assim como as recusas do governo à compra de vacinas.

Também professora de direito internacional da USP, Maristela Basso concorda. “Quando o Felipe Neto diz ele é um genocida ele quer dizer que é um homem que tem condições sim de entender as consequências dos seus atos. Mesmo assim, ele nega e ao negar ele deixa que isso aconteça. Ao deixar que isso aconteça, por uma omissão, ele tem levado sim à morte milhares de pessoas.”

Em 2017, junto com a hoje deputada estadual Janaína Paschoal e o professor Hélio Bicudo, autores do impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, ela denunciou o ditador da Venezuela Nicolás Maduro por genocídio e crimes contra a humanidade, que Basso define como “crimes contra nós”. As provas estão sob análise.

Já Steiner discorda dos demais e afirma que não vê elementos contextuais para provar que o governo brasileiro comete crimes contra a humanidade.

“O crime contra a humanidade exige que exista o chamado ataque sistemático e generalizado contra a população civil. A noção de ataque também já está afirmada na jurisprudência. Não precisa ser necessariamente um ataque armado, mas um plano, uma política de ataque a uma determinada população.”

A ex-juíza afirma que no caso da pandemia, um caminho possível para responsabilizar o presidente é denunciá-lo à Corte Interamericana de Direitos Humanos por violação à vida e à saúde.

O professor Casella concorda que o TPI não seria a instância adequada para julgar as condutas de Bolsonaro.

A denúncia apresentada contra ele em 2020, por “falhas graves e mortais”, foi arquivada temporariamente no mesmo ano, mas para ele isso ocorreu porque a corte é voltada para julgar crimes praticados num contexto de conflitos armados.

“É importante levar pra Comissão de direitos humanos e para Corte Interamericana de Direitos Humanos. A comissão e a corte têm jurisprudência em relação a crimes cometidos pelos estados”, diz.

Na segunda-feira (15), as organizações Comissão Arns e a Conectas denunciaram o presidente Bolsonaro ao Conselho de Direitos Humanos da ONU.

Casella afirma que, em relação a ações contra povos indígenas, cabe a denúncia por genocídio contra Bolsonaro. Nesse aspecto, Steiner concorda.

“Determinadas condutas, por exemplo, a de forçar comunidades indígenas a sair de territórios que tradicionalmente ocupam, isso pode ser uma forma de eliminação daquele grupo”, afirma a ex-juíza do TPI.

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