O rascunho de 98 páginas da Suprema Corte dos EUA em que o juiz ultraconservador Samuel Alito propõe fim ao direito de interromper a gravidez é estarrecedor —por ser o prenúncio de uma revolução que se estenderá muito além do aborto— e pouco surpreendente —por estar sendo cozinhado em banho-maria por republicanos há cinco décadas.
Não há nada de conservador na proposta. Conservador seria preservar o direito ao aborto em respeito ao precedente dos anos 70, mesmo que com modificações, como fez em 1992 a juíza da Suprema Corte Sandra O’Connor —ela mesma conservadora. Tampouco é democrática num país cuja maioria apoia o aborto.
O que Alito propõe é reacionário: finge preservar a tradição devolvendo aos estados o poder de decidir sobre o tema mas na verdade implode décadas de jurisprudência que tentaram tirar leite e mel de uma Constituição esquelética, que não previa direitos em 1788 e constitucionalizou atrocidades como escravidão.
Esse rascunho da Corte vai muito além do aborto: defende que os direitos constitucionais seriam apenas os expressamente garantidos na Constituição, abrindo espaço para reverter uma pletora de decisões —como o casamento homoafetivo— baseadas na penumbra de direitos implícitos, como privacidade, e no devido processo legal.
A decisão, se assim adotada, estará no panteão dos piores julgados da corte. E a competição é dura. A Suprema Corte já disse que negros não podiam ser cidadãos (1857), aprovou a esterilização forçada para pessoas com deficiência intelectual (1927), leis segregacionistas (1896) e campos de internação para americanos japoneses na Segunda Guerra (1944).
Os EUA têm muito a aprender com os latino-americanos, cujos enfoques em desigualdade, não em privacidade, levaram a poucas mas sólidas vitórias, como na Argentina. E o Brasil poderia melhor disfarçar a indignação insincera, já que o STF mantém o nosso Roe vs Wade na gaveta desde 2017, enquanto mulheres pobres morrem por aborto inseguro.
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