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Ilana Ambrogi e Helena Borges Martins da Silva Paro

Decisões que restringem direito ao aborto são contra a vida e a saúde pública

Não garantir o acesso ao procedimento, como Suprema Corte dos EUA indica que fará, afeta negativamente a sociedade como um todo

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Ilana Ambrogi e Helena Borges Martins da Silva Paro

Ambrogi é médica de família e comunidade, doutora em bioética, ética aplicada e saúde coletiva (PPGBIOS/Fiocruz) e pesquisadora da Anis - Instituto de Bioética; Paro é ginecologista e obstetra, professora da Universidade Federal de Uberlândia

A notícia do vazamento do rascunho de uma potencial decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos revertendo entendimento que há décadas assegura o acesso à interrupção voluntária da gravidez provoca alerta, porque sabemos que a garantia do direito ao aborto é inseparável da garantia do direito à saúde.

Se a ameaça de reversão de Roe vs. Wade se concretizar, isso deixará milhares de americanas à mercê de decisões políticas arbitrárias, alijadas das evidências científicas, por parte de legisladores estaduais que podem inclusive impedir totalmente o direito ao aborto.

Não garantir o acesso a esse procedimento afeta negativamente a vida das mulheres e pessoas que podem gestar, das famílias e da sociedade como um todo. Afeta, principalmente, pessoas em contextos de maior vulnerabilidade e que estão constantemente subjugadas a estruturas racistas, capacitistas e heteronormativas.

Ativistas pró e contra o direito ao aborto discutem em frente à Suprema Corte dos EUA em manifestação nesta terça - Win McNamee/Getty Images/AFP

Isso não é muito diferente nos EUA, país que também tem e reproduz muitas iniquidades. Prova disso é que, mesmo com a decisão da Suprema Corte no caso Roe vs. Wade, de 1973, as mulheres americanas em contextos de maior vulnerabilidade seguem tendo que ultrapassar múltiplas barreiras de acesso ao aborto —custo, dificuldade de locomoção, períodos de espera e limites arbitrários de idade gestacional impostas por clínicas e estados.

Como ocorre no Brasil, essas barreiras pouco afetam as mulheres ricas e brancas, que podem acessar clínicas privadas em estados sem essas barreiras.

Aborto (em qualquer tempo gestacional), como já bem estabelecido pela Organização Mundial da Saúde, é uma questão de saúde —pública e individual. Aborto é uma questão de saúde publica porque sabemos que sua criminalização leva a mortes evitáveis das pessoas mais vulneráveis.

Um exemplo potente é do Uruguai, que zerou mortes maternas por aborto com a legalização e a provisão do procedimento de forma segura. O reverso tragicamente é verdade, uma verdade que vivemos no Brasil. O país é um exemplo temeroso, evitável e reversível do que acontece em contextos de leis restritivas à interrupção voluntária da gravidez.

Não só temos mortes e morbidades por aborto 100% evitáveis: temos falta de conhecimento sobre questões básicas em saúde e direitos sexuais e reprodutivos. Não é por acaso que há anualmente ao redor de 20 mil nascidos vivos em crianças de até 14 anos (vítimas de estupro de vulnerável). Isso representa uma tragédia social e uma violação de direitos em saúde como o acesso ao aborto —como também se configura risco para a saúde e a vida dessas milhares de crianças.

Qualquer decisão, em qualquer lugar e em qualquer momento, que deixa de proteger e garantir o aborto vai contra vastas evidências científicas, replicáveis e acumuladas ao longo de várias décadas. Vai contra determinações e acordos internacionais sobre os direitos mais básicos que mulheres e pessoas que podem gestar têm, como o direito à saúde sexual e reprodutiva. Também vai contra princípios éticos tão caros a culturas liberais, como a autonomia.

Essencialmente, decisões que restringem a garantia ao aborto são decisões contra a vida e a saúde pública. É dever de qualquer Estado salvaguardar a saúde da população e proteger os mais vulnerabilizados, criando contextos para que iniquidades históricas e presentes sejam corrigidas —a descriminalização do aborto é uma delas.

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