Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Trabalho escravo precisa ser punido cortando o mal pela raiz

Serra Gaúcha podia trocar de região do vinho por região da escravidão

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A história do trabalho escravo nas vinícolas da cidade de Bento Gonçalves, no Rio Grande do Sul, envolvendo as empresas Aurora, Salton e Cooperativa Garibaldi, ainda está atravessada na garganta. Primeiro, porque são histórias racistas recorrentes quase que diariamente nos noticiários dos jornais, rádios e tevês; segundo, porque as desculpas das empresas se mantêm no padrão de esfarrapadas, dentro da lógica de vitimização do algoz, do escravista, do feitor, sempre tirando o corpo fora – dá-se o mesmo quando se culpa a mulher que é estuprada por causa da roupa que veste na cena do crime.

Bento Gonçalves, importante cidade da Serra Gaúcha, conhecida nacionalmente como a capital brasileira do vinho, deveria ganhar agora novo rótulo: de a capital da escravização, passados praticamente 135 anos da dita abolição da escravatura no país.

Por ironia do destino, em 1870, era denominada Colônia Dona Isabel, em homenagem à Princesa Isabel. É uma região notória pela colonização europeia, que trouxe para o Brasil italianos, russos, espanhóis, franceses, polacos – no apagar das luzes do governo imperial brasileiro, que, além do projeto de branqueamento racial do país, mudou drasticamente a demografia dessa região, que há alguns anos, adotou oficialmente também uma segunda língua, o "Talian", dialeto oriundo do norte da Itália, também falada no interior de Santa Catarina, Paraná, Espírito Santo e São Paulo.

Área onde os trabalhadores foram alojados
Operação com PRF, MPT e Ministério do Trabalho resgatou na noite de quarta (22) trabalhadores mantidos em situação de escravidão em Bento Gonçalves - Divulgação

Não há dúvida da importância do Sul do país no campo da vitivinicultura, ou seja, toda a ciência que envolve o cultivo de uvas e a produção de vinhos. A economia agradece. O que não se pode admitir é a prática de trabalho escravo, altamente aviltante e violento aos trabalhadores brasileiros.

No passado, devido a imigração do povo europeu, sobretudo o italiano, esta indústria só prosperou por conta do tratamento qualificado dado e oferecido a essa mão-de-obra. Tudo o que não ocorre agora.

Soa constrangedor o "estranhamento" das empresas diante dos fatos consumados. Que tipos de contratos são esses assinados com seus fornecedores, onde o que paga e o que recebe não têm controle sobre a forma como seus produtos e serviços são feitos ou oferecidos? Ou só se pensa no lucro advindo desse bárbaro e desumano processo? E o pior: a culpa agora são das terceirizadas, como se não houvesse programa de cogestão financeira e empresarial.

O genial Machado de Assis (1839-1908), no livro "Relíquias da Casa Velha", de 1906, publicou o conto "Pai Contra Mãe". A história é das mais atuais de nossa literatura e da safra legada pelo escritor negro carioca.

No trecho inicial, ele diz: "A escravidão levou consigo ofícios e aparelhos, como terá sucedido a outras instituições sociais. Não cito alguns aparelhos senão por se ligarem a certo ofício. Um deles era o ferro ao pescoço, outro o ferro ao pé; havia também a máscara de folha-de-flandres."

É bem provável que estes trabalhadores tenham "apanhado pancada" por intermédio desses "ofícios e aparelhos", que a escravidão levou mas que foram repatriados na Serra Gaúcha, não mais às barbas do Imperador, mas às barbas da autoridades constituídas.

Não é hora de devaneios. As empresas precisam cortar o mal pela raiz – depois de quase cem anos operando na região – e sentir na pele o quanto esses trabalhadores sentiram na própria carne, nesse pelourinho moderno chamado "ordem de serviço" e nessas novas senzalas, vulgarmente conhecidas pelo nome de alojamento.

Outra coisa importante: o ocorrido na Serra Gaúcha não é caso isolado, tampouco irrefletido. Vamos pegar a visão. Aqui mesmo nesta Folha já descrevi alguns desses casos, com grifes diferenciadas: dos casos de "pessoas que são de famílias" a marcas luxuosas de roupas e sapatos.

E sobre os presumidos impactos financeiros na indústria e no turismo local, foco agora dos sobressaltos de empresários e políticos, saibam que

o que mais importa são as vidas humanas. E pretas. Os tempos são outros. Fica a dica.

Uma nota: corroboro integralmente a opinião de Djamila Ribeiro, colega de coluna desta Folha, contra os ataques a jornalista Maju Coutinho, na cobertura do Carnaval carioca. Maju é uma profissional competente, séria, comprometida em levar o melhor aos telespectadores na tevê brasileira.

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