Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Novas chacinas nos põem em estágio inferior como seres humanos

As mortes do Guarujá, no litoral paulista, e das cidades da Bahia mostram que a violência está por toda a parte

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Na semana passada, tratei nesta coluna dos 30 anos da chacina da Candelária, ocorrida em 1993, no centro do Rio de Janeiro. O assunto me inquieta desde sempre. A primeira razão é pela crueldade com que o crime foi praticado. A segunda, porque fui uma espécie de testemunha ocular dos fatos. Explico.

Ainda tenho na memória as cenas daquele crime. No dia 24 de julho, pela manhã, um dia após os assassinatos, eu fui ao local. As marcas da violência ainda estavam por toda parte, dos tiros nas paredes a manchas de sangue pelo chão.

foto mostra policiais armados posicionados em rua
Policiais militares em Guarujá, durante Operação Escudo - Danilo Verpa - 31.jul.23/Folhapress

Eu era assessor de imprensa da Associação Beneficente São Martinho, na Lapa, uma instituição que atua até hoje em programas de prevenção de menores infratores. Alguns meninos da região, e parte dos seus mortos, frequentavam o local, visitado dois anos antes pela princesa Diana e o seu então marido, príncipe Charles, hoje rei Charles 3º.

Era nesta instituição que meninos se alimentavam, tinham assistência social e psicológica, cortavam cabelo e ganhavam roupas, cobertores e calçados.

Na ocasião, tive de produzir um documento detalhando sobre o ocorrido. Esse trabalho serviu para embasar argumentos do extermínio de jovens no Rio de Janeiro de origem pobre e negra por facções criminosas, milicianas e pelo crime organizado, financiados por iniciativa de corporações privadas interessadas em "limpar" o centro da cidade e livrá-la de moleques e delinquentes.

O Rio de Janeiro não é o único estado da federação a inscrever sua história em páginas sangrentas, lidas por uma justiça amordaçada por um sentido de vingança e impunidade. É como se tivéssemos um partido a defender crimes pela "ordem social", outro arcabouço de lei. Em verdade, a falência do estado seduz a prática da violência contra populações desvalidas. É o que temos visto.

Ao tomar conhecimento, pelos noticiários, sobre as chacinas de Guarujá, na Baixada Santista do estado de São Paulo, e da Bahia, nas cidades de Salvador, Itatim e Camaçari, as cenas dos jovens mortos na Candelária voltaram à minha mente.

Nos dois casos, seja o paulista ou o baiano, ainda estamos presos a narrativas. De um lado o aparato do Estado, com suas ouvidorias e assessorias jurídicas e de comunicação, muito bem aparelhadas dentro de ambientes refrigerados, com água e cafezinhos. De outro, a situação é inversa: casas simples e barracos à mercê de arrombamentos e invasões, ou seja, longe de políticas públicas.

Qualquer forma de violência é ruim para a sociedade, assim como ditaduras, sejam de esquerda ou de direita. No caso de mortes de "suspeitos", a situação se torna ainda mais grave.

Se a morte de um trabalhador de farda justifica trucidar dezenas de pessoas pelo cumprimento do dever, o estado pode se dar por satisfeito e aplaudir qualquer chacina, seja com a força de 600 policiais ou pelo Exército, tanto faz, pois todas as mortes serão apuradas como auto de resistência.

O Instituto Sou da Paz estranhou que as ações que resultaram nas mortes do Guarujá tenham recebido declaração de "bem-sucedidas", já que segundo a ONG houve "denúncias de tortura, violação de cadáveres" e de que vítimas "foram removidas do local".

Entre dúvidas e incertezas, até agora foram contabilizados, em São Paulo e na Bahia, cerca de 38 mortos. Se este é um número oficial, não se sabe. Mas, sem dúvida, essa é a atual marca dos confrontos entre militares e civis.

Obviamente muita coisa ainda precisa ser averiguada para apurar responsabilidades de ambos os lados —do lado da polícia, mantenedora da ordem pública, e do lado dos suspeitos, alçados a bandidos, fora da lei.

Em nota sobre o ocorrido, Sílvio Almeida, ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania, se manifestou dizendo que "as denúncias são graves e precisam ser apuradas", se referindo ao relato dos moradores, que acusaram abuso de poder da polícia durante a operação.

Para Almeida foi "cometido um crime bárbaro contra um trabalhador (policial da Rota) que precisa ser apurado", mas "não podemos usar isso como uma forma de agredir e violar os direitos humanos de outras pessoas".

A nota emitida pelo ministro é taxativa quanto ao respeito ao cidadão, seja de que classe for. "É preciso um limite para as coisas. Então eu acho que o limite para isso é o respeito aos direitos humanos, seja para os agentes da segurança, seja para a população dos territórios onde a polícia atua."

Ainda temos muito o que aprender sobre ter humanidade e sermos humanos. No momento, nosso estágio é de nível inferior. Mas seguimos esperançosos.

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