Tom Farias

Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

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Tom Farias

Os massacres de Tulsa ecoam e doem nas feridas dos negros do Brasil

Em 'A Nação Precisa Acordar', encontram-se referências do ódio racial

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O testemunho do massacre racial de Tulsa, ocorrido em 1921, no estado de Oklahoma, nos Estados Unidos, comentado na coluna passada, traz paradoxos emocionais que ainda impactam pessoas negras por toda a parte do mundo e no Brasil.

O episódio está documentado em "A Nação Precisa Acordar" (Fósforo), de Mary Elizabeth Jones Parrish. Mary Parrish, juntamente com sua filha, sobreviveu aos dois dias de depredações, saques, incêndios, chacinas, assassinatos e desordens, no distrito de Greenwood, em Tulsa, que ardeu em chamas, ceifando a vida de centenas pessoas, além de perdas materiais, causadas por uma "turba cruel em seu ódio letal em relação ao povo negro", como registra, no posfácio, Anneliese M. Bruner, a bisneta da autora.

Considerada a "Wall Street Negra", por concentrar ascendente população afro-americana em negócios e padrão de vida econômica e social, Tulsa logo virou uma "pequena África em chamas", dada a dimensão da violência e do ataque.

O bairro de Greenwood no dia do massacre, em 1921 - American National Red Cross/Library of Congress via Reuters

O estopim da desordem em Tulsa poderia ter sido evitado com facilidade, não fosse o ódio racial contra a população negra local, alimentado pela supremacia branca, aliada a forte aparato jurídico e institucional. Enquanto os prédios eram incendiados, sob o pretexto de destruição e vingança, bombeiros eram impedidos de debelar o fogo, assim como parte da força policial foi acionada para proteger as propriedades de pessoas brancas, únicas que ficaram de pé.

Um jovem negro, Dick Rowland, de 19 anos, foi acusado por uma garota branca, Sarah Page, ascensorista do edifício Drexel, no centro de Tulsa, de ter "agarrado seu braço ao entrar no elevador", único acesso ao banheiro reservado aos negros, para onde o garoto se dirigia. Rowland desmentiu inutilmente a falsa acusação, informando que "tropeçou e pisou acidentalmente" no pé da moça, que gritou, o que fez com que ele corresse.

O jovem foi preso e o jornal sensacionalista Tulsa Tribune, tendo à frente o diretor-executivo Vitor F. Barnett, alardeou o caso, destacando agressões, arranhões no rosto e rasgo de roupas da vítima, chegando a aventar um "assalto", nome genérico a estupro, o que jamais ocorreu.

Ao chegar às ruas com as falsas acusações, o jornal acendeu o estopim que faltava para inflamar a turba branca, focada única e exclusivamente na guerra racial contra negros tulsanos, algo histórico e antigo.

Rumores do linchamento do jovem negro na cadeia se materializaram com a chegada de cerca de 300 veículos de apoiadores brancos, fortemente armados e raivosos. Por outro lado, aliados do jovem, veteranos da Segunda Guerra Mundial, correram em sua proteção. O jovem, afinal, foi salvo, mas a turbulência eclodiu.

Linchar negros, sob o braço armado da Ku Klux Klan local, era algo corriqueiro. Antes do massacre de Tulsa, por exemplo, outros distúrbios ocorreram, como o de East St. Louis, em Illinois, com a morte de 125 pessoas, em julho de 1917. Dois anos depois, foi a vez de Washington, D.C, e, em seguida, Chicago, onde 38 mortes foram registradas e cerca de 500 feridos, assim como no Nebraska, Arkansas e outras regiões do país.

"O horror de Tulsa", proferiu o Kansas City Journal, faz a todos refletir sobre "a exiguidade do limite entre a civilização da selvageria."

A ascensão da classe negra, fortalecida econômica, social e culturalmente, talvez tenha alimentado esse ódio, chega-se a essa conclusão. Negros criaram negócios prósperos mesmo debaixo de segregações. Alguns se tornaram milionários, como médicos, industriais, advogados, numa região com cinemas, igrejas e jornais independentes.

Pensar Tulsa é pensar hoje a realidade do Brasil, onde a circulação de pessoas negras, vai além das "senzalas" comunitárias, periféricas e favelizadas. O Brasil insiste em viver, há séculos, numa cidade murada, não aberta.

Os conflitos de Tulsa ecoam recados preciosos para nós brasileiros, país miscigenado e racista, patrimonializado na ideia de ameaça aos privilégios dos brancos, auferidos pelo suor do homem escravizado.

O "petit-nègre", referido por Frantz Fanon, em "Pele Negra, Máscaras Brancas", exprime bem sua atualidade enquanto estudo clínico, quando assevera, em relação ao negro: "Você, fique onde está".

"Falar ‘petit-nègre’ a um negro —nos diz Fanon—, é humilhá-lo... Entretanto, nos dirão que não há intenção nem desejo de humilhá-lo. Estamos de acordo; mas é justamente esta ausência de intenção, esta desenvoltura, esta despreocupação, esta facilidade em fixá-lo, aprisioná-lo, anticivilizá-lo que é humilhante."

O caso do motoboy, abordado e preso pela Brigada Militar, após denunciar o crime que sofreu, e a da agressão ao porteiro em prédio residencial, tudo isso em Porto Alegre, é a ponta do iceberg brasileiro. A "onda negra" cresce na mesma proporção do "medo branco". A pessoa branca tá segura da imputabilidade criminal dos seus corpos, atos e atitudes. O agressor branco é visto como "pessoa de bem", na ordem pública, enquanto o negro, anticidadão de nascença, é encarado socialmente como arruaceiro, criminoso, delinquente, marginal, agressivo, desordeiro, desonesto, falso, pedinte, suspeito.

O motoboy Everton da Silva é algemado e detido pela Brigada Militar após sofrer uma facada no pescoço; ao fundo, o suspeito, um homem branco sem camisa, sorri em conversa com um policial - @nietzsche4speed no Instagram

O discurso de ódio contra a população negra está estabelecido no Brasil. Nunca regrediu. Sua força propedêutica é voraz. Tem substrato colonial, e dissemina a "guerra contra os negros" desde a escravidão.

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