Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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O silêncio dos indecisos abre espaço para a disputa por seu imaginário

Como se sentir parte de um projeto emancipador de nação se o que se deseja é que o amanhã nunca chegue?

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Como de costume, levanto cedo e faço o mesmo caminho que, durante anos, conduziu-me até a escola. O percurso traz lembranças. Não há como desviar os olhos curiosos de cada casa, cada portão, que em sua arquitetura caótica compõem a paisagem do bairro onde moro.

Vila é assim, uma parte de nós da calçada para fora. História concreta que só quem entende o dialeto dos tijolos laranjas irá compreender. Quando chego à saudosa escola, reparo. É a mesma e não é. Sempre com cara de quem precisa de reforma. Sempre com cara de quem precisa mudar. Observamo-nos.

Eleitores fazem fila para votar na Pontifícia Universidade Católica, na zona oeste de São Paulo
Eleitores fazem fila para votar na Pontifícia Universidade Católica, na zona oeste de São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

Volto não mais como aluno. A fila já quase dobra a esquina, mesmo sem necessidade alguma de definir ordem de chegada. Costume, vão dizer, e é. Fila para tudo. Começa com silêncio absoluto, mas em seguida alguém resolve dar os primeiros sinais de que, muitas vezes, o que se pensa não cabe na cabeça.

"É aqui a fila da cesta básica?" Não entendi bem o questionamento, mas percebi que ele agitou os demais. Alguns instantes depois, outra voz se manifesta. "Tinha que dar um tiro num cara desses! Como que ninguém deu um tiro nele ainda?"

Outro, conversando com ninguém justamente para se dirigir a todos, soltou a esmo: "Hoje é este número na cabeça!" Os que falaram assim o fizeram para demonstrar que decididos estavam. Criei-me num ambiente no qual falar demais, alto, é postura de emocionado ou de quem precisa "se crescer".

Questionei-me se esse era o caso dos que ouvi professar seus íntimos desejos políticos, fosse por vias de um pobre sarcasmo ou de uma sofisticada violência, sutilmente afinada num agudo perfurante.

Porém, o não dito me chamou mais a atenção. Os calados, assim como eu, poderiam também ser pessoas decididas a respeito de seu voto e compromisso com o país. Interessava-me mesmo eram os que ainda estavam indecisos. Eles permaneciam ali, quase dobrando a esquina. Mais do que eles, interessava-me o seu imaginário.

O que pensavam as pessoas cujos ouvidos só captavam frases de imposição, embate e línguas inquietas tentando, de repente, justificar para si mesmas o voto que ali esbravejavam? Será que conseguiriam fazer a escolha não por imposição, mas por convicção de que podem participar da construção de um Brasil melhor? Duvido. E digo a razão.

Há mais de quatro anos que o imaginário dos indecisos não é estimulado por aqueles que, hoje desesperados, tentam impedir a onda reacionária e fascista. Foi, por outro lado, cooptado pela ideologia do medo, da violência, da intolerância e da aversão total às complexidades que constituem as democracias.

Em outras palavras, tomaram de assalto o direito do povo de se imaginar parte da construção do futuro a partir de ideias propositivas, como agentes e não oprimidos. O que se tem neste momento é o futuro pela perspectiva da antivida.

Amanhã não terá mais religião. Depois de amanhã não haverá direito às mais fundamentais instituições como, por exemplo, a família. Amanhã faltará dinheiro, comida, liberdade de expressão. Amanhã, morte. Amanhã, fim. Amanhã acabou sem nem ter começado ainda. O reacionarismo, apegado a um passado glorioso que nunca existiu, impõe pelo medo a imagem de um futuro no qual há segurança se houver submissão ideológica.

Como se sentir parte de um projeto emancipador de nação quando o que se tem é um silencioso desejo de que este tal amanhã nunca chegue? E como impedi-lo? Não há o que se imaginar, pois nada se projeta para além do fim. O terror opera como único caminho e, numa rotineira fila para votação no dia de domingo, quem fala mais alto parece ditar como será o amanhecer dos indecisos. Parece ditador.

Onde estão aqueles que deveriam estimular calados e caladas a, entre cada ponto de suas reticências, tomarem para si —e não mais de assalto— a capacidade de imaginar o futuro? Estão perdidos ainda, gritando muito para tentar se sobressair às exclamações de seus adversários. Na rua, muitas vezes quem cala vence.

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