Veny Santos

Escritor, jornalista e sociólogo, é autor de "Batida do Caos" e "Nós na Garganta".

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Veny Santos

José gostava de agradar aos seus filhos preparando a eles a comida

Colocar a refeição na mesa significa servir aos seus e às suas a vitória cotidiana sobre a luta pela sobrevivência

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A relação com a comida marca. No âmbito familiar ela desenvolve uma comunicação específica, de boca fechada, que requer paladar para degustar histórias amargas sobre tempos em que mastigar algo dava ao corpo e ao espírito mais um dia de vida sob o manto da insegurança alimentar.

Foi na imagem do pai, diante da pia e orquestrando as chamas das bocas de fogão, que o diálogo mudo sobre a fome e se fez lição em mais uma cozinha qualquer escondida na periferia. Seria qualquer se não fosse a de quem vos escreve.

Quando mãe passou a trabalhar como diarista, quem assumia a cozinha para preparar almoço era pai. Enquanto ela estava fora, ele cuidava de mim, do meu irmão, dos animais e da casa. Aprendeu a cozinhar desde pequeno, pois vó Anita contava com a ajuda dos filhos para a realização das tarefas básicas do dia a dia.

Pontualmente, chamava-me para comer ao meio-dia. Quando eu chegava à cozinha, o banquete estava na mesa —o que me causava estranheza. Fomos e ainda somos pobres e tudo o que é demais causa estranheza, para o bem ou para o mal.

Arroz, feijão, couve, salada de tomate, omelete, batata frita, bolinho de queijo, legumes cozidos, alface e o que mais tivesse disponível na geladeira. Eu gostava, mas me perguntava: "Por que todos eles de uma só vez?". Por respeito, não comentava nada e comia tudo.

Depois de muitos anos, já empregado, tive a chance de trabalhar de casa uma vez por semana. Calhou de ser no dia em que mãe ia limpar o apartamento do patrão. Éramos eu e pai, então. Não me deixava fazer a comida. Fazia questão de, novamente, assumir a responsabilidade pelo almoço.

A foto mostra uma mesa com diversas baixelas de inox com farofa, tomate picado, polenta frita, galeto e quatro fatias de picanha
Mesa com carnes e galeto do restaurante O Brazeiro - FolhaPress

Nada mudou: outro banquete. Rememorei a inquietação de antes sobre a quantidade de receitas e a guardei para a noite, quando estivesse com mãe. Questionei o porquê de o pai fazer várias comidas de uma vez só.

Não seria desperdício? Sem precisar de tempo para pensar na resposta, disse-me mãe com uma voz navalhada de cortar ignorância de filho. "Não é desperdício. Seu pai passou fome e muita vontade quando era pequeno. Hoje, ele gosta de fazer bastante comida para que não falte nada, como já chegou a faltar para ele e para vocês quando eram crianças. É por isso que ele faz bastante comida. É o jeito dele de agradar."

"É o jeito dele de agradar." Nunca esqueci essa frase. José agradava aos filhos com comida. Com mesa cheia de opções, sem lugar para a fome se sentar. Quantos Josés não existem pelas tantas cozinhas quaisquer escondidas nas quebradas?

A relação com a comida, sabe-se, está para além da necessidade fisiológica. Tratando-se de populações periféricas, fatores sociais e culturais têm impacto grande que vai desde não ter o que comer, passando pela impossibilidade de escolher o que vai consumir, até a preparação de refeições —nem sempre saudáveis— que deem sustância para aguentar o trabalho dentro ou fora de casa.

Colocar comida na mesa significa servir aos seus e suas a vitória cotidiana sobre a luta pela sobrevivência. Luta que se inicia sem nada para abocanhar, depois com um pedaço para ser dividido por dois, três ou quantos precisarem e, só então depois de anos, com o corpo cansado e aposentado, chega ao ponto de dar a chance de escolher o que colocar no bucho.

A relação com a comida marca. A imagem de meu pai na cozinha assoviando, com o pano de prato no ombro, preparando diferentes receitas, no seu momento, no seu mundo, na sua vingança contra o ronco na barriga do ontem, também. Passar vontade é diferente de passar fome. Passar pelos dois marca para sempre.

A mesa cheia de meu pai é uma mistura de medo e coragem. O receio de não ter o que mastigar novamente e a audácia em fazer fartura com o pouco que tem. Nunca fomos de comer em família, juntos. Mas sempre nos relacionamos por meio da comida.

Uma mesa com quatro cadeiras vazias, mas uma casa com quatro barrigas cheias.

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