Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli

Mimados ou largados?

Afinal, as crianças estão superprotegidas ou negligenciadas?

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Freud, ao cunhar a expressão “sua majestade, o bebê”, anunciava como as crianças preenchiam as expectativas narcísicas dos pais. O projeto de ter um filho era socialmente valorizado —de fato, compulsório— e baseado no modelo familiar burguês. Mas, se para o inventor da psicanálise, no começo do século 20, era o bebê-majestade que imperava, os pais de hoje estão lidando com algo um tanto diferente.

Reportagem do último domingo (31) nesta Folha aponta que a média de filhos passou dos espantosos 6,2 entre 1950-55 para 1,8 entre 2010-15, revelando como as condições socioeconômicas e as mentalidades se modificaram.

O desacordo sobre quem deve/pode assumir o cuidado com a nova geração torna a redução do tamanho da prole obrigatória. Mulheres chefiam quase metade dos lares, segundo o IBGE, demonstrando que a família na qual há um pai provedor financeiro e uma mãe cuidadora
está em processo de extinção.

O psicanalista Joel Birman aponta em artigos recentes como a paranoia com casos de pedofilia e abuso de crianças pode ser reveladora de uma nova conjunção, na qual crianças são tidas como entraves para a vida pessoal dos adultos.

Tendo que escolher entre ser mãe ou ser mulher —dualismo que impera em séculos recentes— as mulheres têm preferido cada vez mais a segunda opção, ou adoecido tentando conciliar as duas. Sua majestade vem dando lugar ao bebê-estorvo, que ninguém consegue ou quer cuidar.

A rede de militantes do Qanon ilustra bem o status das crianças no imaginário atual. Seus integrantes se organizam em torno da ideia de que haveria um estado paralelo de pedófilos tentando dominar o mundo.

Algumas características da paranoia são exemplares aqui: uma convicção inabalável —não há ciência que demova essa certeza enlouquecida— e a impossibilidade de traduzir os dados da realidade —psíquica e social— sem expressá-las em teorias conspiratórias.

Ao invés de reconhecer que a relação com as crianças se tornou mais ambivalente e socialmente preocupante, atribui-se esse fato às forças subterrâneas do mal. Jeitinho astuto de tentar se livrar do incômodo inconsciente.

Isso não significa que pais e mães de hoje amem menos seus filhos do que as gerações anteriores! O amor é um laço social contingente que pode ou não acontecer em qualquer relação. O que mudou é que as condições para cuidar de filhos se deterioraram tanto que estamos diante de uma batata quente, que ninguém consegue assumir sozinho.

Winnicott nos lembra que mimar os filhos é uma forma de tentar compensar nossa sensação de termos sido negligentes, principalmente no início. Expectativas irreais, condições desfavoráveis e sentimentos ambivalentes levam pais e mães a superproteger por se sentirem descuidados. Daí que mimar e não colocar limites vêm junto e não separado da negligência.

Basicamente temos lidado com a infância por meio da falta de limites, da negligência e da paranoia. E não se trata da família de fulano ou sicrano —embora existam famílias piores e famílias melhores— é a sociedade neoliberal como um todo que não tem conseguido responder à equação filhos-trabalho-casa-vida pessoal.

As soluções para a infância precisam ser coletivas, porque os sintomas —tenhamos ou não filhos— o são.

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