Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Vera Iaconelli
Descrição de chapéu Mente internet

Contaremos com a boa-fé das big techs?

Já temos uma boa dica do que IA nos proporcionará

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Em 1982, o educador Neil Postman publicou "The Disappearance of Childhood" ("O desaparecimento da Infância", editora Graphia, 1999) se referindo à descoberta da internet. Postman morreu em 2003, antes que o smartphone revelasse a que veio. Ainda assim, ficou claro para ele que a infância seria irremediavelmente abalada pela revolução digital. O raciocínio do autor é tão simples quanto eloquente: se a infância é um tipo de proteção que se criou com a modernidade em torno das crianças e se essa proteção se baseia em selecionar o que cabe e o que não cabe a elas terem acesso, a internet é a ferramenta que burla de forma espetacular essa proteção.

A entrada do smartphone, já sabemos, aumentou os índices de suicídio, depressão, ansiedade e automutilações em crianças e jovens. Ferramenta poderosa demais, que pode ser usada para potencializar o melhor e o pior da humanidade, foi deixada nas mãos das crianças por pais e educadores que não encontraram barreiras na sua comercialização. Não só os adultos ficaram siderados pela ferramenta altamente viciante que as fábricas colocaram no mercado, como entenderam que seus filhos não deveriam ficar para trás, uma vez que ali estava o futuro e o produto estava na prateleira sem restrições.

Denis Charlet - 21.out.20/AFP

A geração das minhas filhas teve a sorte de que a comercialização dos aparelhos ainda era incipiente e que o celular, embora já preocupante, era apenas um telefone. Daí a exposição a livros e a experiências no aqui e agora ainda serem a tônica da vida infantil delas. Entre o acesso aos aparelhos, os saltos tecnológicos, e a velocidade de transmissão de informações, foram mais de 20 anos disputando a atenção dos filhos com o canto das sereias. Agora já temos uma geração que não conhece um antes da virtualidade e para quem a internet parece como a luz elétrica: naturalizada e imprescindível.

Há quem argumente que os criadores dessas maravilhas da tecnologia não tinham como prever os efeitos colaterais de sua comercialização indiscriminada. Sabemos, no entanto, que esses mesmos criadores não forneceram sua obra para os próprios filhos. Das duas uma: ou sabiam dos efeitos sobre a socialização, sobre o corpo e sobre o desenvolvimento psíquico e quiseram poupar suas crianças ou não sabiam e, cautelosos, impediram que elas fossem cobaias.

Sobrou para nós sermos os ratos de laboratório do produto que conjuga o pior e o melhor que o ser humano foi capaz de inventar. Como citei recentemente em um posfácio, as descobertas cobram seu preço, como da radioatividade que expôs os pioneiros ao câncer, ou os primeiros psicanalistas que saíram chamuscados da interação arrogante e ingênua com o inconsciente.

A questão é que mal acordamos da abdução comercial a que fomos lançados e uma nova revolução bate à porta, orquestrada com a mesma ética que assistimos até aqui. A Inteligência Artificial é a nova maravilha tecnológica que se joga no mercado sob o cínico slogan de que o "Ele" regula.

Não canso de me encantar com as possibilidades da IA. Mas deixaremos novamente que essa ferramenta seja explorada sem regulamentação para que os sujeitos toscos se tornem ainda mais ricos e poderosos, enquanto o mundo se esfacela?

Queremos o fogo, a luz elétrica, a radioatividade, a internet e a IA como aliados, não como experimentos lucrativos da qual somos cobaias. Já que não temos como mandar esses palhaços cínicos para onde gostaríamos e Marte parece um destino longínquo, não seria o caso de usarmos a lei, as manifestações e o boicote seletivo desde já?

Não temos mais a desculpa de não sabermos o que está se passando.

Em tempo: você sabe com quem seu filho está interagindo agora na plataforma Discord?

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