Vera Iaconelli

Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise, autora de “O Mal-estar na Maternidade” e "Criar Filhos no Século XXI". É doutora em psicologia pela USP.

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Há um ano escolhemos outra direção

O exemplo de nazista mais temível não era o psicopata sádico, mas o burocrata que seguia ordens de um ídolo sem questioná-las

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Faz um ano que assistimos estupefatos à invasão e a destruição do palácios do Planalto, do Congresso e do STF em Brasília. Terror anunciado que espreitava as eleições de 2022 e que não cansamos de denunciar. Não fizemos campanha apenas contra "O" mito, mas contra qualquer sujeito que propõe essa impostura, desobrigando seus adoradores de assumirem os próprios atos.

O exemplo de nazista mais comum e temível não era o psicopata sádico, mas o burocrata que seguia ordens de um ídolo sem questioná-las. Assim denunciou Hannah Arendt, e também o saudoso Contardo Calligaris, em livro lançado postumamente ("O grupo e o mal: estudo sobre a perversão social", Fósforo, 2022).

O ideal nazifacista é a do burocrata, cidadão que justifica o ato violento como um mal necessário, a mando de alguém que considera seu superior. Esse é um tipo de alienação, mas também temos o sujeito que se faz anônimo dentro da massa tresloucada dando vazão a seus impulsos reprimidos, sendo capaz de linchar uma pessoa sem pestanejar.

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Ataque golpista ao Palácio do Planalto, Congresso e Supremo Tribunal Federal - Pedro Ladeira - 8.jan.23/Folhapress

Já o psicopata, o sádico serial, não se encontra em nenhuma dessas duas formas de alienação à massa. Ele está no comando, tem método e se não sente culpa, não é porque se aliena ao desejo do outro, mas porque esse afeto não faz parte de seu repertório. Para ele, o outro não tem o mesmo status que atribui a si mesmo, servindo apenas aos seus interesses. O psicopata atrapalha a tarefa do burocrata nazifascista, pois cria caos e terror onde se prega obediência, disciplina e rigor. Daí a fixação no regime militar, que busca regrar os impulsos em nome de, digamos, um mal maior.

Transformar o outro em mito é uma forma de nos sentirmos menos desamparados nesse mundão sem Deus e é, ainda, uma das formas mais recorrentes e perigosas de evitarmos encarar nosso desamparo estrutural. Algo como "posso dormir sossegada, papai e mamãe estão aqui", só que fora da infância. Troque papai e mamãe por qualquer outra miragem e teremos uma trégua para nossas perenes angústias.

O presidencialismo se presta à criação de mitos revelando que nunca superamos totalmente o sonho de realeza que, como tal, é direito garantido por Deus e transmitido pelo sangue —da linhagem e da violência. Basta um deslize e a guilhotina do cancelamento cumpre sua função: "o rei está morto, viva o rei!". Mas não há vácuo no poder e a adoração, como vimos, pode ser deslocada até para um pneu de caminhão.

Passado um ano do novo governo, lutamos para recuperar aquilo que a pandemia e o descaso destruíram, comemorando todo dia a volta do verniz da civilidade. E o risco está exatamente aqui. O governo Lula é uma lufada de civilidade, mas, se não houver uma oposição inteligente que aponte suas falhas e limitações, estaremos dentro da lógica do mito. Daquele que devemos obedecer sem reflexão e responsabilidade, erro que não podemos cometer.

A situação das comunidades indígenas, por exemplo, continua calamitosa e a volta dos garimpeiros é denunciada diariamente por instituições sérias. As crianças estão nascendo com problemas de saúde graves devido à contaminação por mercúrio, mulheres sofrem abortos recorrentes e estão expostas à doenças sexualmente transmissíveis, só para citar alguns problemas entre inúmeros outros.

Já podemos prescindir da palavra genocídio, quando a morte e a destruição dos modos de vida insistem? Verbas e boas intenções sem um diálogo direto com essas comunidades indígenas e ribeirinhas é um vício dos que querem fazer o bem, mas esquecem de escutar a parte interessada. Não ouvir o cidadão periférico e vulnerabilizado é um erro conhecido por nós.

Crítica sem reflexão é violência, mas governo que não se pode criticar se torna culto.

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