Zeca Camargo

Jornalista e apresentador, autor de “A Fantástica Volta ao Mundo”.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Zeca Camargo

Que a gente se perca

Viagem também serve para que turista se isole e desapareça um pouco

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Não sei nem dizer ao certo onde eu estava. Tinha concluído um trekking em Papua-Nova Guiné —o mesmo em que fui esbofeteado, num momento de delírio, pelo guia, num episódio já contado neste espaço. Estava exausto. E ligeiramente desorientado.

Montamos acampamento em uma praia —não me pergunte o nome dela. A ideia era nadar por ali com golfinhos e conhecer uma ilha na região, remota, esquecida pelo tempo. Ou, pelo menos, pelos tempos modernos. Cumpri toda a agenda com louvor.

Maíra Mendes

Eu mesmo estava, digamos, perdido, se não no tempo, ao menos no espaço. Desde criança, desde as primeiras viagens, eu me regozijo nessa “fantasia geográfica”: a de achar que ninguém sabe onde eu estou num determinado momento.

Pensava nisso quando, mesmo em destinos mais manjados, tomava um café numa esquina que, como eu gostava de pensar, não estava em nenhum guia de Paris. Ou entrava numa rua de Barcelona que nenhum turista ainda havia pisado. Doce ilusão.

À medida que as minhas andanças chegavam a destinos mais distantes, eu elaborava ainda mais. Num igarapé isolado no lago Inle, em Mianmar. Numa barraca de comida de rua em Mumbai. Num beco escuro de Bancoc às quatro horas da manhã. E, finalmente, no limite urbano de Timbuktu, no Mali, olhando o deserto do Saara, destino que me foi apresentado —também já contei aqui— como “o fim do mundo”.

Claro que o tal do mundo existia para muito além daquele horizonte de dunas de areia —sempre existe para quem ama viajar. 

Percorri estradas ainda mais remotas, a caminho de Lalibela, na Etiópia; ao redor de Naoshima, no Japão; rumo ao infinito no salar de Uyuni, na Bolívia. No entanto, nunca havia experimentado estar tão longe de tudo quanto nessa viagem a Papua-Nova Guiné.

Que era, aliás, exatamente o que eu queria. Viajar sozinho é um dos meus prazeres secretos que vez por outra confesso por aqui. 

Talvez porque eu trabalhe intensamente e sempre cercado de tanta gente, esse espaço solitário funciona como um ponto de equilíbrio para mim. E ali na Nova Guiné pensei ter chegado a uma espécie de nirvana.

Então, meu guia —o mesmo que havia me estapeado— me acordou bem cedo numa manhã dizendo que sua agência de viagens tinha entrado em contato pedindo que eu ligasse para o Brasil. O assunto, aparentemente, era trabalho, o que já afastou preocupações que envolvessem saúde e família.

Clã Uramana, que vive na região de Tufi, na Papua-Nova Guiné
Clã Uramana, que vive na região de Tufi, na Papua-Nova Guiné, fotografados em 2017 - Jimmy Nelson

Nem por isso fiquei menos inquieto. Teria sido demitido? Não precisaria mais voltar das férias? Melhor eu me arrumar por ali mesmo, em outras latitudes, outras longitudes? 

Por uma ligação telefônica precária —estava no meio do nada, lembra?— falei com o Rio de Janeiro. A notícia era importante, envolvia uma mudança crucial na apresentação do programa que eu fazia.

No entanto, eu me perguntava se poderia ter seguido no meu isolamento sem essa interrupção. Eu teria que me adaptar a uma nova realidade quando voltasse ao Brasil, mas será que eu precisava me preocupar com aquilo durante o meu retiro? 

No fim daquela mesma manhã conturbada, já não pensava mais no assunto. A força da natureza à minha volta era tudo de que precisava para, apenas algumas horas depois, ao desembarcar de uma canoa delgada na ilha “esquecida pelo tempo”, voltar ao precioso espaço que dividia apenas comigo mesmo.

Lembrei-me desse episódio porque estou prestes a sair de férias novamente. Neste ano elas chegam meio atrasadas. Ando numa rotina intensa de trabalho —e, entre outras aflições, sobrevivo a uma reforma geral no meu endereço carioca. 

Junte a esse estresse as notícias surreais que nos chegam todos os dias e você vai entender como estou precisando voltar para lá.

E onde é lá? Onde ninguém sabe que ali estou. Porque viagem também serve para isso. Para aceitar o convite que Chet Baker nos faz na sua terna rouquidão: “Let’s get lost”...

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.