Descrição de chapéu Alalaô

1951: O ano em que a Bahia foi atrás da Fobica, e não parou mais

Precursor do trio elétrico agitou o Carnaval de 1951

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Rio de Janeiro

O Ford Modelo T começou a ser fabricado em 1908 e se tornou o carro mais popular do mundo naqueles primórdios da indústria automobilística —da qual foi impulsionador decisivo. Dez anos após nascer nos Estados Unidos, chegou ao Brasil. Viria a ganhar aqui o apelido Ford Bigode, derivado do desenho de suas duas alavancas.

Como somos bons nisso, do apelido surgiu outro: Fobica. E desse carro pequeno e perto de ficar obsoleto, emergiu em 1951 uma das maiores (com duplo sentido) invenções do Carnaval: o trio elétrico.

Ainda era uma dupla elétrica a que circulou por Salvador na Fobica. Adolfo Antonio Nascimento, o Dodô, nascido em 1920, e Osmar Alvares de Macedo, três anos mais novo, tocavam desde 1943 o pau elétrico. Consistia numa base modesta de madeira —às vezes extraída de violões e cavaquinhos que eles quebravam— acrescida de cordas e, é claro, uma tomada elétrica. Foi o pai de um instrumento que logo se tornaria célebre: a guitarra baiana.

E, na hora de se tentar definir que tipo de música se tocava, um dos nomes criados foi frevo baiano. O casamento entre Pernambuco e Bahia se dera de maneira apaixonada. De passagem rumo ao Rio de Janeiro, o clube de frevo Vassourinhas tinha sido a grande sensação do pré-Carnaval de Salvador de 1951. Em 29 de janeiro, seus 65 músicos —a maioria num poderoso naipe de sopros— arrastaram milhares de pessoas enfeitiçadas. “Imensa multidão acorreu às ruas” foi o título, no dia seguinte, de reportagem do jornal Estado da Bahia. 

Dodô e Osmar estavam misturados à massa e saíram dela decididos a pegar carona no sucesso do Vassourinhas. Maquiaram um Ford Bigode safra 1929, ligaram os instrumentos a um gerador de dois quilowatts e puseram um alto-falante na dianteira e outro na traseira. Na tarde do domingo de Carnaval, 4 de fevereiro, entraram na rua Chile em baixa velocidade e alto volume. Atrás da dupla elétrica foram incontáveis e incontroláveis foliões. 

A banda Armandinho, Dodô e Osmar comemora as bodas de prata do trio elétrico, em 1975, numa fobica igual à que circulou no Carnaval de 1950, em Salvador (BA).
A banda Armandinho, Dodô e Osmar comemora as bodas de prata do trio elétrico, em 1975, numa fobica igual à que circulou no Carnaval de 1951, em Salvador (BA). - Reprodução

Consta que Osmar disse a Olegário, que dirigia a Fobica: “Vamos parar, senão a gente sai daqui preso”. E o motorista teria respondido: “Não posso, a Fobica já quebrou desde lá de baixo. Quem está empurrando é o povo”.

O relutante “consta que” se justifica pelo senso de marketing de Osmar. Seu amigo Dodô morreu em junho de 1978, e ele em junho de 1997. Durante 19 anos, foi sua a voz oficial dos acontecimentos. E ele decidiu, por exemplo, que a Fobica estreara em 1950, e não no ano seguinte. Nunca se soube bem o porquê da mudança, mas a tentação da data redonda é a principal suspeita. 

O erro se espalhou e é encontrável até em trabalhos de fôlego sobre a história do trio elétrico. Mas pesquisadores sérios, entre eles Rosimario de Aragão Quintino, foram às fontes e mostraram, apoiados em notícias de jornal, que o Carnaval histórico foi o de 1951.

O elenco aumentou no ano seguinte com a entrada de Temístocles Aragão, que tocava triolim —mais uma invenção elétrica, esta com três cordas. Em 1954 ele saiu, mas o nome “trio elétrico” já tinha pegado. Sua evolução ao longo das décadas seguintes é uma mistura de inovações tecnológicas, automobilísticas e musicais. Os de hoje são feitos sobre carretas que carregam cerca de cinco toneladas de ferro para suportar equipamentos, caixas de som e dezenas de pessoas.

Cantar sobre os trios era algo praticamente impossível, por causa da microfonia. Logo, fazia pouco sentido ter canções voltadas para eles. Mas Caetano Veloso compôs, em 1969, a música que se tornou o hino do Carnaval elétrico baiano: “Atrás do Trio Elétrico”. Em 1972, voltando do exílio em Londres, criou outro sucesso do gênero: “Chuva, Suor e Cerveja”. E dividiu essas músicas com o público, desafiando a microfonia.

Mas foi Moraes Moreira, em 1975, quem deu a guinada decisiva. Cantou “Pombo Correio” no trio de Dodô, Osmar e Armandinho —guitarrista virtuoso, um dos sete filhos de Osmar— e indicou que o impossível era possível. Continuou fazendo um sucesso literalmente estrondoso nos fevereiros seguintes. Os antigos companheiros Baby Consuelo (hoje Baby do Brasil), Pepeu Gomes e Paulinho Boca de Cantor saíam com o trio elétrico Novos Baianos, apelidado Morcegão da Madrugada, por causa do recurso das caixas de som pretas enfileiradas. Hoje, as estrelas da festa são os cantores, como Ivete Sangalo, Claudia Leitte e Daniela Mercury.

A invenção de Dodô e Osmar possibilitou a mistura nas ruas de brancos e pretos, ricos e pobres, desmontando a segregação que existia no Carnaval de Salvador. Ironicamente, foram os blocos donos de grandes trios que adotaram os abadás e as cordas, separando de novo brancos e pretos, ricos e pobres.

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