Militar brasileira enfrentou minas, tempestade de areia e chefiou tropa no deserto

Andréa Firmo é a primeira mulher do Exército a comandar base de missão de paz da ONU

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São Paulo

Quando Andréa Firmo era bebê, seu pai a colocava para dormir com a Canção da Infantaria. “Nós somos estes infantes, cujos peitos amantes nunca temem lutar”, cantava o pai, que foi soldado. “Eu estava sendo preparada desde criança para isso, me arrepia”, conta Andrea, hoje com 50 anos e a primeira mulher do Exército brasileiro a ser comandante em uma missão de paz da ONU.​

A tenente-coronel chefiou por um ano a base de observadores militares em Tifariti, no deserto do Saara, parte da Minurso (Missão das Nações Unidas para o Referendo no Saara Ocidental). Em abril, passou o bastão do comando e se prepara para voltar ao Brasil.

Andréa foi também a primeira comandante mulher dentro da Minurso, onde supervisionou 21 capacetes azuis, de 20 países diferentes — 18 deles eram homens. Ao chegar na missão, se tornou ainda a primeira brasileira a ser observadora militar na ONU.

A base de Andréa era, como ela descreve, “um bando de contêineres, no meio do nada, cercados de areia”. Ela fazia patrulhas no deserto, com outros observadores militares, para monitorar a manutenção do cessar-fogo entre o Marrocos e a Frente Polisário, um movimento que luta pela independência do Saara Ocidental. Criada em 1991, a missão previa também um referendo sobre a autodeterminação do povo saarauí, que ainda não foi realizado.

Apesar do cessar-fogo, Andréa afirma que a tensão na região é permanente. “Já houve atentados com carro-bomba e manifestações violentas”. Uma das tarefas da militar era identificar minas terrestres não detonadas, para que uma empresa fizesse a detonação. “Há muitas minas, pelo passado de conflito da região. Eu mesma encontrei uma enorme”, conta Andréa à Folha, por telefone. Por isso, os observadores nunca podiam sair das trilhas. “Elas supostamente são livres de explosivos.”  

Durante tempestades de areia ou nas raríssimas chuvas, o risco aumenta, porque as minas são arrastadas. Nesses casos, a orientação é ficar parado e, se possível, abrigado. Em uma patrulha, Andréa foi surpreendida por uma tempestade de areia. “Não se via nem um palmo adiante. Parecia que o carro tinha entrado em um lava-rápido.”

O vento forte carrega pedras e pode amassar a lataria ou quebrar os vidros do veículo. “É muito tenso. Se quebrasse o vidro, nós ficaríamos em uma situação bem complicada. Por isso temos máscaras dentro do carro.” Andréa também ficou três dias seguidos sem poder deixar a base por chuvas fortes. “Foi muito inusitado, mas depois o deserto floresceu todinho. Foi lindo.”  

Além das intempéries climáticas, outro desafio era comandar uma equipe majoritariamente masculina, bem como liderar as negociações com o exército Polisário, composto em grande parte por homens muçulmanos. Antes da missão, Andréa passou por treinamentos no Uruguai, Canadá e no Centro Conjunto de Operações de Paz do Brasil (CCOPAB).

Com formação em letras na UFRJ, Andréa entrou no Exército com 27 anos como professora de inglês. Naquela época, mulheres não eram treinadas como combatentes — apenas em fevereiro deste ano a primeira turma com cadetes mulheres iniciou a formação de combate na Aman (Academia Militar das Agulhas Negras).

Andréa avalia, no entanto, que sua experiência como professora foi fundamental para seu estilo de “comando democrático”. “Tornou tudo mais fácil. Usei muitas técnicas de orientação educacional.”

A tenente-coronel procurou respeitar a diversidade cultural da equipe e ouvir os mais experientes. “Alguns tinham nove missões nas costas. Se você tem experts do seu lado, você precisa escutar. Com isso, eles passaram a me respeitar como comandante.”

Para ela, no entanto, ainda há “uma vasta estrada para a mulher se impor”. “Eu participava de todas as atividades de carga, carregar pneu, comida, e isso incomodava [os homens]. Eles achavam que tinham que ser cavalheiros”, conta. Ela ressalta que a parte física precisa ser feita pela mulher de forma autônoma. “Não é que você vai fazer só para mostrar que pode, mas precisa estar preparada [para a tarefa]”.

Mulheres nas Forças Armadas

Andréa é uma defensora veemente do papel da mulher nas Forças Armadas. “Precisamos estar em pé de igualdade, é nosso direito”, diz.

Entrar para o Exército era seu sonho desde criança. “Fui da quarta turma do Quadro Complementar de Oficiais, que teve as primeiras mulheres nos anos 1990”. Na infância, seu pai a levava para o Colégio Militar do Rio de Janeiro, onde ele trabalhava —a escola tampouco aceitava meninas.

“Ter um filho homem para colocar no colégio militar era uma meta de vida do meu pai, mas ele teve três filhas. A Marinha e Aeronáutica admitiram mais cedo as mulheres, e ele não conseguia conter a ansiedade para que o Exército fizesse o mesmo”, conta Andréa.

A tenente-coronel diz não sofrer preconceito por ser mulher nas Forças Armadas, mas considera que há “uma diferenciação por falta de capacitação operacional”.

“Senti uma baixa expectativa: ‘será que você, que não fez a academia militar, terá as mesmas condições de comandar que um homem militar do Exército?’ Porque eu sempre exerci funções educacionais. Tive que aprender em dois anos [nos treinamentos no exterior e no CCOPAB] o que eles aprendem na academia em quatro ou cinco”, afirma.

Entretanto, ela é otimista em relação ao avanço da paridade entre homens e mulheres nas Forças Armadas. “O Exército está caminhando, sou um exemplo disso”.

A militar quer estimular outras brasileiras a se voluntariar para missões da ONU. Andréa acredita que uma visão antiquada sobre o papel da mulher na família ainda impede que muitas militares optem pelas missões. “Eu também recusei propostas de ir ao Haiti para ficar perto dos meus filhos, que eram pequenos”. Andréa tem um menino de 8 e duas meninas de 13 e 17 anos.

Segundo ela, o Brasil tem um número baixo de voluntárias. “Quero dizer para elas que é possível se preparar na parte operacional e conciliar a família com a missão. [A sociedade] dá ao pai uma permissão para se afastar e não para a mãe. Precisamos aprender a ter esse desprendimento”.

Andréa só pôde visitar o Brasil uma vez durante o ano fora, mas falava com os filhos diariamente. Transformava suas experiências, como andar de camelo, em aventuras, e fazia conexões com o livro “O Pequeno Príncipe”, que se passa no deserto do Saara.

“Criei historinhas para as crianças, e elas foram vivendo tudo comigo como se fossem coisas mágicas”.

Para Andréa, falta oportunidade para que as mulheres ocupem cargos de comando. “A gente não mandava mulher [para missões], então elas nunca podiam ser escolhidas como comandantes. Quando a gente tem a oportunidade de se expor, a gente conquista”.

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