Descrição de chapéu
Matheus Moreira

Por que é tão difícil entender que se fantasiar de preto ofende pessoas negras?

A prática é considerada preconceituosa porque reforça estereótipos e desumaniza pessoas negras

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Após externar a minha revolta ao ver que ainda há quem defenda fantasias como Nega Maluca a um amigo, ele me disse: “É tão fácil não ser racista no Carnaval, mas tem quem se esforce para ser”. 

Não tenho como concordar mais. 

Não é novidade que uma pessoa branca pintar seu rosto e corpo de preto —a prática conhecida como blackface— pode ofender pessoas negras. 

O blackface surgiu no século 19. Na época, atores brancos se pintavam de preto para, de forma caricata, representar negros em peças recheadas de racismo que eram apresentadas para escravocratas.

Com o tempo, a prática de passar carvão no corpo e tinta vermelha na boca para simular lábios grandes perdeu a graça da novidade, mas nem por isso deixou de existir. Alguns desenhos animados passaram a representar negros de forma inexpressiva e sem individualidade. 

A prática é considerada preconceituosa porque reforça estereótipos de pessoas negras, quando, na verdade, nós somos diversos, temos boca, nariz, pele, cabelo e trejeitos diferentes uns dos outros.

Jogos Olímpicos da Cidade do México, 1968: atletismo: os atletas negros norte-americanos Tommie Smith (centro) e John Carlos (dir.), medalhas de ouro e de bronze nos 200 m, fazem a saudação com o punho cerrado do grupo Panteras Negras, como protesto a conflitos raciais nos EUA
Jogos Olímpicos da Cidade do México, 1968: atletismo: os atletas negros norte-americanos Tommie Smith (centro) e John Carlos (dir.), medalhas de ouro e de bronze nos 200 m, fazem a saudação com o punho cerrado do grupo Panteras Negras, como protesto a conflitos raciais nos EUA - France Presse- AFP

Usar perucas de cabelo black power também não é homenagem e, certamente, não é engraçado.

Fantasiar-se de “nega maluca” é uma forma velada de promover racismo por meio do estereótipo de mulheres negras. Não fosse suficiente o uso da blackface nesses casos, ainda há o deboche da estética da mulher negra e também sua hipersexualização por meio de fantasias com seios fartos e quadris largos, por exemplo. Esse tipo de representação desumaniza mulheres negras, as coloca como intelectual, social e culturalmente inferiores, sugerindo que elas recorreriam à histeria e à raiva, de forma animalesca, para lidar com questões comuns na vida de qualquer pessoa. 

A nossa cor e o nosso cabelo não são piada porque eles ditam quem vive e quem morre. A cor da pele de uma pessoa no Brasil representa a linha tênue entre viver mais um dia ou virar estatística. 

A chance de um jovem negro ser assassinado é 2,7 vezes maior do que a de um jovem branco. 

Há 24 anos tenho contrariado essas estatísticas por pura sorte. Fui abandonado logo cedo pelo meu pai (um homem negro) e fui criado pela minha mãe (uma mulher branca), cercado pela parte branca da minha família. 

Eu me descobri negro aos 18 anos, quando uma professora me disse que eu poderia ser o próximo Obama. Somente então a ficha caiu. Por ter crescido em um ambiente de classe média, tive mais oportunidades que muitos da minha cor têm, o que também me ajudou a seguir vivo. 

O racismo, porém, é perverso. Nunca fui o que a sociedade considera o padrão de beleza; achava que só não tinha um rosto bonito, mas a verdade é que sou mais escuro do que o permitido. Foram muitas horas de terapia, encontros de coletivos negros, leitura, reflexão, um processo lento e muitas vezes doloroso para gostar mais de mim.

Entre uma crise depressiva e outra, me perguntei muitas vezes por que eu não morria enquanto meus irmãos que tiveram menos sorte que eu estão morrendo a cada 23 minutos, enquanto estão sendo presos, principalmente nos bairros mais pobres, por terem “perfil suspeito”. 

No Brasil, segundo os dados mais recentes do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a cada 100 pessoas assassinadas, 75 são negras. Entre 2017 e 2018, 74,5% das pessoas que morreram em decorrência de intervenções policiais eram negras. 

 

Em 2017, ano-base da pesquisa, 66% das mulheres assassinadas eram negras, um crescimento de quase 30% em relação a 2007. Além disso, dentre as mulheres mortas pelo simples fato de serem mulheres, as negras representam 61%.

Variadas vertentes do movimento negro fazem críticas duras à Polícia Militar, mas entre eles há negros que sofrem como todos nós. De todo o efetivo policial do Brasil, incluindo a Polícia Militar, Civil e Federal, 34% são negros. A cada 100 policiais assassinados, 51 são negros. 

A lista vai longe, mas, em suma, toda vez que uma pessoa branca sai no Carnaval ou em qualquer outra ocasião usando blackface com a finalidade única de se divertir, essa pessoa está olhando para todas as dores que citei e as que falhei em citar e manifestando um grande e sonoro: não é problema meu. 

Cabe a nós, negros (pretos e pardos) lembrarmos os brancos de que sim, é problema de vocês. O racismo os privilegia, então lidem com ele e busquem soluções para resolver o problema que as pessoas brancas do passado criaram. Escutar quando pessoas negras se dizem ofendidas já é um excelente começo. Não é nossa obrigação acabar com o racismo do qual somos vítimas, mas, se houver escuta, podemos fazer isso juntos, negros e não negros. 

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.