Descrição de chapéu Coronavírus

Com 100 mil mortos, pandemia desmoralizou previsões conservadoras e exageradas

Médicos, políticos e cientistas dizem que Covid-19 surpreendeu pela intensidade e duração

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Com a marcha acelerada da Covid-19, que chega agora a 100 mil mortes, economistas e meteorologistas ganharam companhia no ramo das previsões furadas.

A escalada da pandemia derrubou estimativas feitas no início da crise por políticos, médicos, cientistas, empresários e palpiteiros em geral sobre sua intensidade e duração.

A maioria das apostas acabou se revelando conservadora, mesmo as que eram consideradas pessimistas. Houve, em menor número, exageros no outro extremo, com previsões apocalípticas que acabaram não se confirmando.

“Ninguém acertou. Você cria cenários, mas ter certeza está sendo muito difícil nessa pandemia”, diz o infectologista David Uip, que coordenou o Centro de Contingência do Coronavírus de São Paulo até maio.

Ele previu, em uma entrevista à Folha, em 15 de abril, que o pico no estado ocorreria em maio. O mês terminou, vieram junho e julho, e a curva da Covid-19 seguiu sem freios, com casos no interior compensando a queda na capital.

Uip diz que, independentemente dos números, o estado se preparou para grande volume de infectados e de mortos.

“O centro de contingência fez uma avaliação de que teríamos no estado de 1% a 2% de infectados. E 20% destes iam precisar de atendimento, sendo 5% de UTI”, afirma. O adiamento do pico, para ele, teve um lado positivo: tornou a curva mais suave, o que deu mais tempo para os sistemas hospitalares se prepararem.

O próprio presidente Jair Bolsonaro, para quem a doença é uma “gripezinha”, não resistiu a dar seu chute.
Em 22 de março, ele disse, em entrevista à TV Record, que esperava um número de mortos inferior às 796 causadas pela gripe H1N1 em 2019. Sua bola de cristal durou apenas 17 dias. Em 8 de abril, as mortes já superavam 800.

O presidente foi influenciado em seu otimismo pelas projeções róseas feitas por seu ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra, que conquistou o posto de guru de bolsonaristas logo no início da pandemia. Em um áudio compartilhado entre apoiadores do presidente, em março, ele faz uma série de afirmações categóricas que foram naufragando uma a uma.

“No Brasil a gente está estimando que possa chegar a 30 mil, 40 mil casos. E o número de mortos deve ficar em mil e poucos, 2.000”, afirmou.

Brandindo a autoridade de quem foi secretário de Saúde do Rio Grande do Sul durante a crise da H1N1, em 2009, ele disse que a Covid-19 seguiria um padrão “matemático”.

“Todas as epidemias duram em torno de 13 semanas e depois regridem, desaparecem”.

Pelas contas de Terra, o atual surto, iniciado no final de fevereiro no Brasil, deveria entrar em declínio na segunda metade de maio. Mas àquela altura, o país já registrava mais de mil mortes diárias.

Procurado pela Folha, Terra admite que fez uma projeção otimista na época, baseada nos casos da China, que havia tido 4.000 mortes em uma população de 1,4 bilhão, e da Coreia do Sul, com 200
mortos em 51 milhões.

“O vírus mostrou uma velocidade maior depois disso, também por conta de erros no combate à pandemia”, afirma.

Segundo ele, não houve achatamento das curvas, nem diminuição de doentes e mortes com a quarentena.

“Reduzir a crítica a uma projeção numérica é uma forma de tentar desqualificar o que venho pregando na essência: fazer quarentena e ‘lockdown’ foi um erro, tanto que devemos chegar à triste e trágica marca de 100 mil mortes”, afirmou.

Sucessor de Terra na pasta da Cidadania, Onyx Lorenzoni arriscou previsão um pouco menos modesta em conversa entre eles em abril, captada pela CNN. Falou em 4.000 mortos.

Entre empresários, números voaram livremente. Junior Durski, da rede Madero, causou furor em março ao dizer que não se podia parar a economia por causa de “5 ou 7.000 pessoas que vão morrer”.

Helio Beltrão, do Instituto Mises Brasil e colunista da Folha, apostou em total de mortos inferior a 10 mil, enquanto Luciano Hang, da Havan, cravou em junho que o pico da doença já havia passado.

Médicos tampouco se saíram muito melhor. Em 12 de março, circulou um áudio do toxicologista Anthony Wong, do Hospital das Clínicas, em que ele falava em no máximo 1.500 casos de contaminação.

“Dentro de dois, no máximo três meses, o surto vai acabar, vai diminuir acentuadamente. O Brasil vai chegar a 1.000 casos? Muito provavelmente. A 1.500? É possível. Mas mesmo assim, até agora não teve nenhuma morte. Então, gente, fiquem sossegados”, disse.

Procurado pela Folha, Wong fez um mea culpa. “Realmente, nós erramos na quantidade. Mas todo mundo errou, a OMS errou, na Inglaterra aquele [pesquisador] Neil Ferguson [do Imperial College] errou pra caramba. Essa maldita pandemia está surpreendendo todo mundo e levou a extremos de todos os lados”, afirmou.

Curiosamente, o áudio de Wong era para responder a outro que havia circulado horas antes, do cardiologista Fábio Jatene, do Incor (Instituto do Coração), que citou estimativas de médicos de 45 mil casos na Grande São Paulo em quatro meses, ou seja, até 12 de julho.

Considerada alarmista, a previsão de Jatene acabou se mostrando tímida. Em 12 de julho, já eram 228 mil os casos confirmados na região metropolitana de São Paulo.

Para o médico Drauzio Varella, colunista da Folha, houve uma mistura de otimismo e negação coletiva nos primeiros meses do ano.

“Quando começou na China, o mundo permaneceu otimista. Eu inclusive”, diz. “Com os dados que a gente recebia, não havia como fazer uma previsão mais próxima da realidade que se estabeleceu depois”.

Drauzio gravou um vídeo no final de janeiro minimizando o risco. Afirmou que não havia motivo para pânico e que ninguém precisava alterar a rotina. Em março, tirou o vídeo antigo do ar e gravou outro se corrigindo. “Era o mínimo que eu poderia fazer”, afirma.

Para Drauzio, houve uma série de fatores que ajudaram no processo de escalada da doença acima de qualquer projeção inicial. “Quando a doença chegou, deveríamos ter tido uma coordenação central do
Ministério da Saúde. E deveria ter um comitê de crise para avaliar as necessidades”, afirma.

Outros erros cometidos foram a demora na universalização do uso de máscaras, a relutância em decretar “lockdowns” e os problemas na testagem, ainda não completamente solucionados.

Em março, por exemplo, uma diretriz do governo recomendou que apenas casos com sintomas graves fossem testados, o que contraria recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS). Depois, com os números se avolumando no país, a orientação foi alterada.

Houve ainda problemas mais gerais, que atrapalharam o combate à pandemia. A começar pela relutância da OMS de decretar uma emergência global, o que foi feito apenas no final de janeiro. Também gastou-se tempo, energia e dinheiro com a insistência pelo governo brasileiro em usar cloroquina no tratamento, um medicamento sem eficácia comprovada.

No outro extremo, foram divulgados cenários ainda piores que também não se confirmaram. O que causou mais barulho foi o do biólogo Atila Iamarino, colunista da Folha, numa live em seu canal no YouTube em 20 de março, quando citou a possibilidade de 1 milhão de mortos ou mais até o fim de agosto.

Com base em um estudo do Imperial College britânico, que tratava da doença nos EUA e no Reino Unido, ele citou dois cenários: o de “mitigação”, com fechamento parcial da economia, e o de “supressão”, com interdição total.

“A mitigação é o que a gente está fazendo no Brasil, parar escola, faculdade, transporte, trabalho. Supressão é o que a China fez: ninguém sai de casa, circula na rua, ninguém faz nada”, afirmou.

Segundo ele, “se o Brasil só adotar medidas de mitigação, em que a gente restringe a circulação em alguns lugares, fecha algumas coisas, mas não adota um cenário completo, o que a gente vê pela frente aqui é 1 milhão de pessoas mortas ou mais até o final de agosto”, completou. Procurado, Iamarino não quis se manifestar.

Em 27 de março, o próprio Imperial College divulgou um estudo específico sobre o Brasil, em que afirma que uma estratégia baseada apenas em distanciamento social deixaria 627 mil mortos. Acrescentando o isolamento de idosos, o número cairia para 530 mil.

Embora o Brasil não tenha adotado o modelo de fechamento completo, o número de mortes ao fim de agosto deve se situar ao redor de 120 mil —uma calamidade, mas bem distante das piores previsões feitas para o país.

PREVISÕES FURADAS DA COVID-19

“A previsão é não chegar a essa quantidade de óbitos [796 mortes pela H1N1] no tocante ao coronavírus”
Jair Bolsonaro, em entrevista à Record, em 22/3
O que aconteceu: marca foi ultrapassada em 8 de abril

“A gente está estimando 30 mil, 40 mil casos. E o número de mortos deve ficar em mil e poucos, 2.000. [...] Todas as epidemias têm um padrão, elas duram em torno de 13 semanas”
Osmar Terra, ex-ministro da Cidadania, em áudio em março
O que aconteceu: número de casos superou 40 mil em 20 de abril, e o de mortes ultrapassou 2.000 em 17 de abril; epidemia já dura mais de cinco meses

“[O número de mortos] deve chegar a 4.000”
Onyx Lorenzoni, ministro da Cidadania, em conversa ouvida pela CNN em 9 de abril
O que aconteceu: marca foi atingida em 25 de abril

“As [mortes] de hoje e o número de internações estão bem inferiores ao que já aconteceu”
Luciano Hang, em videoconferência com empresários em 8 de junho
O que aconteceu: curva de casos e mortes continuou a subir em junho e julho

“Dentro de dois, no máximo três meses, o surto vai acabar. [...] O Brasil vai chegar a 1.000 casos? Muito provavelmente. A 1.500? É possível”
Anthony Wong, toxicologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, em 12 de março
O que aconteceu: surto já dura mais de cinco meses; patamar de 1.500 casos foi atingido em 22 de março

“Em quatro meses haverá 45 mil pessoas com coronavírus só na Grande São Paulo”
Fábio Jatene, cardiologista do Incor, em áudio relatando avaliação de médicos em 12 de março
O que aconteceu: em quatro meses, eram 228 mil casos na Grande SP

“Se o Brasil só adotar medidas de mitigação, mas não um cenário completo [de fechamento], o que a gente vê é 1 milhão de pessoas mortas ou mais até o final de agosto”
Atila Iamarino, biólogo, em seu canal no YouTube, em 20 de março
O que aconteceu: Brasil não adotou fechamento completo, e mortes devem ficar ao redor de 120 mil até o fim de agosto

“Aqui [em SP] estamos prevendo que [o pico] será em maio, mas não dá para precisar qual a semana de maio”
David Uip, infectologista e integrante do comitê estadual de combate ao coronavírus, em entrevista à Folha em 15 de abril
O que aconteceu: números começaram a cair no estado, e lentamente, apenas no final de julho

“Os óbitos de Covid-19 no Brasil apontam possivelmente para total inferior a 10 mil”
Hélio Beltrão, presidente do Instituto Mises Brasil e colunista da Folha, em 22 de abril
O que aconteceu: marca de 10 mil mortos foi atingida em 9 de maio

“Não podemos [parar] por conta de 5 ou 7.000 pessoas que vão morrer”
Junior Durski, empresário, dono da rede Madero, em 23 de março
O que aconteceu: marca de 7.000 mortos foi alcançada em 3 de maio

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.