Descrição de chapéu Obituário René Ariel Dotti (1934 - 2021)

Mortes: Decano da advocacia, defendeu a democracia e perseguidos pela ditadura

René Ariel Dotti venceu a timidez e se tornou um dos mais respeitados juristas do país

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Curitiba

Uma simples conversa do dia a dia se transformava em aula quando um dos interlocutores era o professor René Dotti, 86. E não faltavam ouvidos atentos para aprender. Foram mais de 60 anos dedicados à advocacia e pelo menos 40 à docência na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

Com ele, a História encontrava a harmonia perfeita com a clareza do contar. Não bastava dizer que era de Curitiba, Dotti fazia questão de detalhar que nascera no Dia da República, 15 de novembro, a 200 metros de onde o papa João Paulo 2º rezaria a primeira missa na capital paranaense em sua visita ao Brasil, em 1980.

Filho de um pintor de casas e de uma costureira, acreditou que não teria condições de passar no vestibular de medicina e, então, aconselhado por amigos, percorreu o caminho do direito. Entrou no curso em 1954, mas lhe faltava algo essencial para a profissão: a oratória.

A timidez do jovem simples fazia com que a gagueira aparecesse sob mínima pressão. Assim, ao lado do colega Ary Fontoura, hoje consagrado ator, encontrou no teatro a técnica para melhorar a dicção. Convidado a seguir na carreira, Dotti recusou. O direito era seu mundo.

René Ariel Dotti (1934-2021) - Zé Carlos Barretta - 30.mai.17/Folhapress

De desacreditado na área, transformou-se em um dos mais respeitados advogados do país. Comandou uma banca com 30 profissionais – entre eles, sua filha Rogéria. No escritório de casa, em meio a uma biblioteca digna de faculdade, abriu lugar para um pequeno palco para apresentações teatrais, frequentemente aberto para os colegas da arte.

Os primeiros desafios jurídicos foram impostos pela ditadura militar. Poucos dias após o golpe de 1964, ele já tentava libertar um oficial da base aérea de Curitiba, preso por subversão. Também atuou por estudantes de Florianópolis, detidos em 1979 ao protestarem durante uma visita do então presidente João Figueiredo.

Apesar de adepto do direito penal, tinha também na liberdade de expressão e de imprensa suas grandes causas. Era amigo dos jornalistas. Sem cobrar honorários, defendeu 43 redatores e articulistas da sucursal paranaense do Última Hora perseguidos pelo regime.

Ele mesmo se destacou na imprensa como escritor e cronista. O talento lhe garantiu inúmeros prêmios, mas também uma ficha no Dops (Departamento de Ordem Política e Social) de São Paulo. No arquivo de outubro de 1978, consta que Dotti fora o vencedor de um concurso jurídico com um artigo que defendia a regulamentação do uso de escutas telefônicas e interceptação de correspondências de suspeitos, além da garantia de acesso deles aos dados pessoais em posse do regime.

“Era um advogado de uma geração em que o sujeito vinha do jornalismo, do teatro, da cultura e virava advogado. E ele desempenhava tudo isso com muito brilho, era um personagem único, cujo acúmulo de experiências vinha salpicado com humor e de modo muito espirituoso”, define o reitor da UFPR, Ricardo Marcelo Fonseca.

Em 1991, Dotti também emitiu um parecer em favor da Folha no processo movido pelo presidente Fernando Collor de Mello contra o então diretor de Redação do jornal, Otavio Frias Filho, e outros três jornalistas sob a acusação de calúnia. Ele levantou a suspeição do juiz João Carlos da Rocha Mattos, que foi afastado do caso. A sentença acabou favorável ao jornal.

Além das liberdades, foi um legítimo patrono do direito de defesa. Enquanto atuou em casos polêmicos, como na Lava Jato, como advogado da Petrobras, e do ex-deputado Fernando Ribas Carli, condenado pela morte de dois jovens em um acidente de trânsito, não dava ouvidos para as críticas.

“Sou advogado, trabalho com a lei. Incomoda, mas tenho de lidar com isso”, rebateu aos questionamentos em uma entrevista de 2015 ao jornalista José Carlos Fernandes, da Gazeta do Povo.

Dotti morreu em casa, onde estava isolado desde o início da pandemia, de parada cardiorrespiratória. Deixou a esposa Rosarita, as filhas Rogéria e Cláudia, e os netos Gabriel, Pedro, Lucas e Henrique, além de uma legião de admiradores.


coluna.obituario@grupofolha.com.br

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