Descrição de chapéu LGBTQIA+

Ex-ex-gays abalam movimento pró-'cura gay' nos EUA, mas braço brasileiro segue forte

Exodus Brasil mantém atuação após líderes anunciarem em 2013 fim de grupo internacional

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São Paulo

Alan Chambers, 49, passou a vida inteira ouvindo argumentos pró e contra direitos LGBTQI+. Até se tocar que, bom, ele era “parte do problema, não da solução”.

Por 37 anos, a Exodus Internacional serviu de farol para o movimento “ex-gay”, escorando-se em orações e terapias para tentar reverter a homossexualidade de uma pessoa. Em 2013, a organização, que tinha sob sua guarida dezenas de ministérios evangélicos nos EUA, realizou sua 38ª conferência anual. A última. Ali, alguns de seus principais líderes jogaram a toalha.

Adriana Carla, 46, em prédio no Recife; ela frequentou um dos centros que prometiam a chamada 'cura gay'
Adriana Carla, 46, em prédio no Recife; ela frequentou um dos centros que prometiam a chamada 'cura gay' - Leo Caldas/Folhapress

“Lamento a dor e a mágoa que muitos de vocês experimentaram”, disse Alan, seu então presidente e um autodeclarado “ex-gay”, como todos os presentes. “Lamento que alguns de vocês tenham passado anos trabalhando com a vergonha e a culpa que sentiram quando suas atrações [sexuais] não mudaram.”

“Pray Away” (ora pra longe), documentário recém-lançado na Netflix, conta a ascensão e queda desta “cosmovisão que não honra nossos semelhantes e tampouco é bíblica”, nas palavras de Alan.

Quando o grupo comprou a briga contra o casamento homoafetivo, Yvette Schneider, 47, chegou a argumentar que a atração sexual pelo outro não justificava um matrimônio. O que viria depois? Um pedófilo casado com um menor de idade? Um homem e um cavalo?

“Poucas declarações que fiz me embrulham tanto o estômago”, disse em 2014, seis anos depois. Yvette foi mais uma defecção na cúpula.

John Paulk, 58, foi outra. Era chamado de rockstar dos ex-gays. Casou com uma mulher que se dizia ex-lésbica. Os dois apareceram na capa da revista Newsweek. Anos depois, ele foi ejetado da presidência da entidade após ser flagrado no Mr. P’s, um bar LGBTQI+ em Washington. Hoje é um orgulhoso ex-ex-gay.

Yvette reconhece que, mesmo com a deserção em massa dos líderes, novos ativistas tomaram para si a tocha da causa. “Não está morrendo como achamos que morreria”, diz.

No Brasil, o movimento passa bem. Sua missão é resumida assim em seu site: “As Escrituras Sagradas são a verdade e autoridade finais com relação a todas as questões pertinentes à moralidade, assim como a fonte de esperança àqueles que estão em dilema com a homossexualidade”.

Como na extinta matriz americana, o Exodus Brasil apoia e capacita projetos cristãos dedicados ao que no país se convencionou chamar de “cura gay”.

As terapias de reversão se apresentam como práticas ditas profissionais ou religiosas que partem do “pressuposto da patologização e do moralmente inaceitável”, explica o antropólogo Flávio Conrado, coordenador do Evangélicxs pela Diversidade. Ser LGBTQI+ seria uma doença de corpo, mente e espírito, segundo essa visão.

A expressão “cura gay” não lhe passa batida. “Embora o tema das identidades seja muito mais amplo do que a palavra ‘gay’, as instituições religiosas reduzem toda essa complexidade ao termo.”

“Oração, jejum, exorcismos, reuniões individuais e em grupo, formas de hipervigilância, perda de privacidade e humilhação” estão entre as ferramentas preferenciais, segundo Conrado.

São técnicas como o “genograma de práticas pecaminosas”. “Veja, o nome mais rebuscado pretende passar por uma metodologia em que você monta sua árvore genealógica da forma mais completa possível, sempre focando desvios morais dos familiares", ele explica.

Funciona assim: o paciente detalha o que puder sobre os parentes, “desde a mais frívola situação, como uma fantasia de puberdade do tio primogênito de sua mãe, até a frequência de consumo de pornografia que um primo distante possa ter”.

Com essas informações, o mentor encoraja atividades para quebrar uma suposta maldição hereditária, diz o antropólogo. "Junto com as orações em voz alta e unção com óleo, são proferidas palavras de ordem para que, naquele ambiente quase hipnótico e delirante, surja a esperança de uma reorientação."

Adriana Carla Alves e Silva, 46, quis muito acreditar que a dela viria. Conta que virou missionária “querendo fugir pra ver se essa coisa dentro de mim ia passar”.

Certa vez, num treinamento religioso, viu duas colegas que tiveram um casinho serem “disciplinadas” —expulsas. “Aquilo me apavorava: as pessoas descobrirem que eu também tinha os mesmos sentimentos. Não queria ser vista como uma abominação.”

Por anos, pregou o Evangelho numa aldeia indígena no Oiapoque (no Amapá). Até chegar sua vez de ser “disciplinada”: envolveu-se com uma mulher e foi acusada de tê-la seduzido. “Saí [do Amapá] com a percepção de que eu era uma pessoa ruim. Eu tinha que voltar pra mostrar que não era aquele monstro.”

Mas como voltar, se não “mudada”? Adriana entrou num desses programas sob o guarda-chuva do Exodus Brasil. Problemas na família e pornografia eram causas atribuídas, sem qualquer baliza científica, à orientação sexual indesejada.

"Da desfuncionalização familiar às heranças espirituais, muita água rolou antes de uma pessoa resolver ‘sair do armário’”, diz a sinopse de “Construindo um Quadro de Homossexualidade”, vídeo de Marcos de Souza Borges, o pastor Coty, rosto conhecido entre os adeptos da reversão.

Outro é o de Andréa Vargas, líder do Exodus Brasil e professora da Escola da Sexualidade na Avalanche Missões, por onde Adriana Carla passou.

Em entrevista para o canal JesusCopy, ela diz que homossexualidade “não é crime, é direito”. Mas também afirma que é preciso entender “que a chegada do Evangelho de Jesus vem para desconstruir a tirania das vontades”.

Para Andréa, “a pessoa envolvida na homossexualidade em geral está tão convicta que tem que reaprender a viver que chega numa humildade. Aí você vê o tanto que essa pessoa recebe de Deus”. Segundo ela, uma contraposição ao heterossexual, que só vê um único defeito quando procura aconselhamento sobre uma sexualidade sadia —a masturbação.

Para Flávio Conrado, não adianta dizer que a busca por “cura” precisa ser voluntária, e não imposta na marra. Nos dois casos, o estrago está feito. Ou alguém normalizaria um tratamento para, digamos, transformar héteros em homossexuais? “Os impactos são muito negativos. Afetam a autoestima, aumentam a sensação de vergonha e culpa, provocam o isolamento social, ódio ou aversão de si, causam ansiedade, depressão e tentativas de suicídio.”

Reportagem da Folha em 1998 já descrevia a atuação do Exodus Brasil. No caso, uma reunião com 150 pessoas em Viçosa (MG) voltada a “pessoas que desejam compreender melhor o homossexualismo [sic] e as possibilidades de saídas oferecidas por Jesus Cristo”.

O tema transbordou para a opinião pública quando, em 1999, o CFP (Conselho Federal de Psicologia) proibiu psicólogos de tratar as homossexualidades como psicopatologia .

Dez anos depois, Rozângela Justino foi censurada por fazer justamente o que o órgão vetou e entrou na Justiça para derrubar essa resolução.

Naquele ano, ela disse à Folha se sentir perseguida por conselhos de psicologia afoitos para instaurar a “Santa Inquisição para heterossexuais”. Candidata à presidência da entidade em 2019, ela acabou na lanterna da disputa.

Se no divã não pode, o que resta hoje aos defensores brasileiros das terapias de reorientação? “Verifica-se que técnicas religiosas como exorcismos ou práticas pseudocientíficas como as constelações familiares são utilizadas, bem como jogos de imaginação em masturbações, para que o sujeito se imagine tendo relações com pessoas do sexo oposto”, diz Héder Bello, psicólogo e coorganizador de “Tentativas de Aniquilamento de Subjetividades LGBTIs”, publicação lançada pelo CFP.

A Folha procurou, sem resposta, por telefone, email e redes sociais, membros do Exodus Brasil. Artigo reproduzido no site do movimento fala sobre o documentário na Netflix: "Lamentavelmente, os depoimentos em 'Pray Away' demonstram a crença em atrações sexuais determinando a identidade das pessoas. Entendemos ser essa uma forma de ver a vida e interpretar a realidade. Mas cremos não ser a única".

Adriana Carla lembra que saiu de seu "tratamento" com a “cabeça firmona” para não se interessar mais por mulheres. Em vão. “A minha sexualidade estava lá, não foi mudada.”

Um pastor até lhe disse que, se não fosse para casar com um homem, o celibato era uma saída. "Disso eu não dava conta", afirma.

Os “pensamentos de morte” foram piorando. Pensou em “acabar com tudo” batendo o carro na estrada. “Foram mais de 30 anos me sentindo a pior das pessoas”, diz. Foi quando encontrou “uma pastora louca” que achou bobagem aquele seu papo de querer ser o que não era.

"Rapaz, olhei pra você e sabia que era lésbica”, ela reproduz o que escutou da líder evangélica responsável por “desmitificar essa crise minha”. Ouviu também: “Faz o seguinte, esquece a Bíblia, esquece as pessoas, pelo amor de Deus, foi Deus quem fez sua sexualidade. Se joga”.

“E aí, cara, foi isso que eu fiz”, conta. “Eu tava querendo ser feliz.” Hoje é.

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