Descrição de chapéu Rio de Janeiro Auxílio Brasil

Favelado só é lembrado por imposto, voto e lucro, diz presidente da Cufa

Preto Zezé critica fim do Bolsa Família e fake news sobre vacina; Dia da Favela é comemorado nesta quinta (4)

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Rio de Janeiro

Há 121 anos, a palavra "favela" surgia pela primeira vez em um documento oficial. Vinha junto de adjetivos associados à sujeira, à imoralidade e ao perigo, na visão do chefe da polícia do Rio de Janeiro, se referindo ao Morro da Providência, no centro da cidade.

"Favelados" eram os soldados que lutaram na Guerra de Canudos e depois ocuparam o morro, com a pele manchada pela planta de mesmo nome, comum no sertão nordestino. A data foi oficializada como Dia da Favela e neste ano será celebrada com uma série de eventos, incluindo uma queima de fogos em 400 pontos (veja a programação ao final).

Francisco José Pereira de Lima, 45, é presidente nacional da Cufa (Central Única das Favelas), ativista, empresário, produtor cultural, escritor e fundador da LIS (Laboratório de Inovação Social). Nasceu na favela das Quadras, em Fortaleza, onde trabalhou como lavador de carros - Daniel de Araújo Ferreira/Divulgação

Uma das figuras que acompanha a evolução desses territórios há quatro décadas, Preto Zezé, 45, atual presidente nacional da ONG Cufa (Central Única das Favelas), critica um olhar público e privado que, segundo ele, só vê esses locais como fonte de imposto, voto e lucro.

Por outro lado, o ex-lavador de carros que virou empreendedor enaltece um movimento de empoderamento que tem transformado "estigma em carisma". À Folha, ele falou também sobre a pandemia de coronavírus e o fim do Bolsa Família.

Qual é a importância do Dia da Favela para o país?
Primeiro, foi a primeira vez em que a palavra favela foi citada em documentos oficiais, como um lugar sujo e perigoso, então tem uma importância histórica. Segundo, quem ocupou o Morro da Providência foram os soldados sobreviventes da guerra de Canudos, que retornaram ao Rio e, como não receberam as casas prometidas caso vencessem, ocuparam o espaço. O paralelo disso para hoje é que a população que compõe as favelas são as pessoas despejadas com o fim da escravidão, então existe a importância de se reconhecer nesse território.

Estamos falando de quase 14 milhões de pessoas, segundo a definição do IBGE de "aglomerados subnormais". Seria o quarto maior estado da federação e, apesar da pandemia, das mortes e de todo o resto, tem um poder de consumo de R$ 119 bilhões por ano [segundo pesquisa do Instituto Locomotiva e Data Favela de 2020]. Então comemorar o Dia da Favela hoje é, ao mesmo tempo que reconhecer todo esse cenário de desigualdade, dar visibilidade às agendas positivas que transformam estigma em carisma e poder. Celebrar essa potência e capacidade de inovar das favelas brasileiras.

Como vê o uso comercial da imagem da favela?
Está bombado. Agora tudo é preto e tudo é favela, é impressionante. Você vê propaganda com os moleques dançando na parada do ônibus, sem camisa, com a favela ao fundo. Eu penso que esse momento é de a gente da favela também repensar. A gente não pode aceitar mais que a favela seja vista como aquele grande safári ou laboratório, e os favelados como camundongos que vão ser pesquisados e estudados. Ao mesmo tempo, temos que nos qualificar para fazer o "translation" do favelês para a linguagem do homem branco do asfalto.

Por exemplo, [fizemos um fundo em que] priorizamos o grupo mais vulnerável, as mães solteiras, a maioria negra. A partir das mulheres atendidas se desencadeou uma rede de cuidado com as crianças, com os idosos, e elas viraram lideranças. Estamos apresentando uma forma de sobreviver onde o Estado não existe. A favela começa a ser um ator político e econômico estratégico para o país.

A política e o setor privado estão aprendendo a usar o potencial das favelas? O que falta?
Só lembram da favela quando é para cobrar imposto, pedir voto ou lucrar vendendo produto. Quando a gente entender que, num país desigual como o Brasil, compartilhar riqueza e oportunidade com essa população não é gasto, é investimento, aí sim vamos nos tornar uma nação. Porque no Brasil não falta dinheiro ou comida. A nossa fome não é um acidente ou um descuido, é um projeto. A concentração de renda é um projeto. Mas, se continuar do jeito que está, com as riquezas e oportunidades na mão de poucos, vamos construir um abismo e um caos danado. E aí o Brasil vai ser só uma ilha de desigualdade, cercada de racismo e mágoa por todos os lados.

Existe uma desigualdade muito grande entre as favelas e dentro das próprias favelas no país. Como chegar a esses locais muito pobres?
Lógico que tem as desigualdades regionais, não dá para dizer que um favelado de São Paulo é igual a um favelado do interior do Piauí, mas a dinâmica de vida diante da desigualdade é mais ou menos parecida. Agora, entregar uma cesta básica no Rio Grande do Sul envolve dificuldades diferentes do que no Acre. O Brasil tem que se perceber na sua diversidade. Quando se nega isso, se nega a possibilidade de incorporar todas as competências que ele tem. Aí todo mundo vai para a região mais rica, que é São Paulo.

Você também poderia ter um Nordeste rico com tudo que ele produz, e não só visto pelas praias. Ver o Norte não somente como a Amazônia. Se tivermos a relação capital e natureza equilibrada, podemos ser uma superpotência. Mas esse modelo que estão criando para o Brasil, que é o mesmo de 1500, levando nossas riquezas para fora e querendo ser igual à Europa, não tem nada a nos dar. A prova está aí com os indicadores.

Uma pesquisa do Data Favela em fevereiro mostrou que 53% dos moradores de favelas tinham medo de a vacina não fazer efeito. Como combater as as fake news sobre o tema?
Informação verdadeira definiu vida e morte na favela. Teve uma mulher que queria levar o marido doente ao hospital, mas ele falava que não ia porque senão iam dar um veneno para matá-lo e dizer que foi a Covid. Resultado: o cara não foi e morreu. Vimos até gente achando que se vacinassem iam introduzir um chip. Outro dia até perguntei de que tamanho é esse chip, porque a agulha é bem pequenininha.

Teve gente querendo saber a procedência da vacina e eu falei: vocês comem cachorro-quente, linguiça, e agora estão preocupados com a procedência das coisas? Aí eu mostrava um vídeo de como é feita a linguiça. Então é possível produzir reflexões pedagógicas sem colocar a pessoa como ignorante. Criamos uma agência de digital influencers, nossas redes sociais, preparamos protocolos, informações. A mentira só se enfrenta com a verdade.

Como acha que a substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil vai impactar nas favelas?
A transferência de renda tem sido importante. Uma pesquisa do Instituto Locomotiva sobre o impacto do auxílio emergencial na economia das favelas mostra que mais de 90% das pessoas compraram comida e mais de 60% compraram comida para parentes e amigos. A questão do Bolsa Família é mais grave porque você desfaz e desarticula uma política pública vencedora, importante para que as pessoas tenham o mínimo do mínimo para poder respirar e jogar o jogo. Isso é preocupante demais num momento em que a gente tenta conseguir mais política pública e presença do Estado para proteger quem mais precisa.

DIA DA FAVELA NO RIO DE JANEIRO

Queima de fogos
Horário: 0h
Local: em mais de 400 favelas do Rio

Homenagem a Arlindo Cruz
Horário: 10h
Local: Escola República de El Salvador (r. Almeida Nogueira, 85 - Piedade)
O quê: Escola recebe o sambista, sua esposa, Dudu Nobre e a bateria do Império Serrano, para cantar com o coral do colégio.

Aulão sobre a origem do Dia da Favela
Horário: 13h
Local: Escola Monte Castelo (r. Ouseley, S/N - Coelho Neto)
O quê: Além do aulão, dia terá uma redação aplicada aos alunos, produção de grafites, slam, música e roda de rima.

Exposição de grafite
Horário: 10h
Local: Museu de Arte do Rio (Praça Mauá, 5, Centro)
O quê: Exposição de grafites resultado de um concurso que a Cufa promoveu a pedido da Microsoft.

Concurso Pegue a Visão
Horário: dia todo
Local: Online
O quê: Da janela, estudantes da rede municipal deverão tirar uma foto da sua comunidade e postar nas redes sociais usando as hastags #cufa #smerj #diadafavela. As 10 melhores irão para um site de votação popular e as 3 mais votadas ganharão prêmios.

Outras atividades

  • Vidigal: Plantação de mudas de favela na trilha do Morro Dois Irmãos e palestra
  • Jacarezinho: Corte de cabelo, torneio de futebol e torneio de queimado
  • Complexo do Alemão: Aferição de pressão e glicose, plantação de mudas de favela, palestra sobre câncer de mama, distribuição de 200 refeições, apresentações de rap, roda de capoeira, batalha de passinho e de rimas e apresentações
  • Morro do Sossego (Duque de Caxias): Oficina de artesanato e roda de conversa com mulheres
  • Borel: Torneio de futebol, apresentação grupo de dança, roda de conversa e lanche
  • Muquiço: Pintura, torneios de futebol, bolo, distribuição de lanches e entrega de cestas básicas
  • Jorge Turco: Exposição de fotografia, corte de cabelo, manicure e trancista
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