Descrição de chapéu desmatamento

Família de ribeirinhos morta morava em área reivindicada por irmão de prefeito no PA

Político nega relação dele e da família com caso; em 40 anos, foram 62 assassinatos na região, mas ninguém foi condenado

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São Félix do Xingu (PA)

Assassinado com a mulher e a enteada em janeiro, o ambientalista José Gomes, o Zé do Lago, morava dentro de área reivindicada pelo irmão do prefeito de São Félix do Xingu (PA), o pecuarista João Cleber de Souza Torres (MDB).

A família habitava uma casa de madeira e piso de chão batido na região conhecida como Cachoeira do Mucura, às margens do Xingu, a 86 km de barco da sede do município. Ao lado, está a fazenda Barra do Baú, de Francisco Torres de Paula Filho, o Torrim, irmão do prefeito. Na margem oposta, fica a fazenda Bom Jardim, do próprio João Cleber.

Os corpos de Zé do Lago, 61, sua mulher, Márcia Nunes Lisboa, 39, e a enteada, Joane Nunes Lisboa, 17, foram encontrados em 9 de janeiro, já em decomposição. Todos foram mortos a tiros —​havia 18 cápsulas no local. Mais de um mês após o crime, ninguém foi preso.

Dois homens estão montados em cavalos, um marrom e um preto; os dois usam blusas azuis e coletes brancos; eles erguem os braços e seguram chapéus em espécie de saudação
Prefeito de São Félix do Xingu, João Cleber (MDB), ao lado do governador e correligionário Helder Barbalho (à direita); foto está em seu perfil no WhatsApp - Divulgação

Durante seis dias, a reportagem da Folha viajou em lancha entre Altamira e São Félix do Xingu. O trajeto de cerca de 550 km alterna áreas preservadas de unidades de conservação, como a Resex (Reserva Extrativista) do Rio Xingu, e terras indígenas com fazendas de gado, estas mais próximas de onde morava a família assassinada.

Nas conversas, moradores descreveram Zé do Lago como um "ambientalista de coração", que vivia de forma despojada e percorria o rio por conta própria para ensinar ribeirinhos e indígenas a fazer o manejo de quelônios. O repovoamento de tracajá e tartarugas nas águas do Xingu era a sua grande obsessão desde que chegou à região, vindo de Conceição do Araguaia (TO), há cerca de duas décadas.

Pessoas próximas contam que Zé do Lago subia os ninhos de anu em árvores que estavam prestes a ser inundadas na época de cheia do Xingu. Anos atrás, o ribeirinho apareceu nos índios parakanãs para ensiná-los a retirar os ovos de tracajá das praias, acondicioná-los em caixas de areia e depois soltar os filhotes no rio. A técnica protege os répteis de predadores naturais e humanos e aumenta a taxa de sobrevivência.

A casa onde o ativista ambiental Zé do Lago foi assassinado junto com sua mulher e filha em São Félix do Xingu (PA) - Bruno Santos/Folhapress

A reportagem esteve também no sítio de Zé do Lago. Na área para atracar lanchas, havia uma placa com os dizeres "Proibido caça e pesca" —a única com essa mensagem em centenas de quilômetros de rio.

Perto da margem, havia uma barraca que protegia roupas penduradas, muito puídas e provavelmente lavadas no rio. Ao lado, ouriços de castanha-do-Pará quebrados.

A casa fica a algumas dezenas de metros da margem, em um lugar mais alto. Pelo caminho, mudas de açaí e várias árvores frutíferas: cupuaçu, jenipapo, mangueiras e jambo. No fundo, bananeiras. Em volta, um jardim com pimenta e flores.

Um homem negro, de barba branca, veste boné preto e blusa verde; ele segura um filhote de tartaruga na cor laranja
Ambientalista José Gomes, o Zé do Lago, morto a tiros em janeiro, em São Félix do Xingu (PA) - Arquivo pessoal

Cercada de floresta, a família tinha poucos bens materiais, apesar de ter vivido no local por 20 anos. Havia um rádio velho pendurado perto da cozinha, dominada por um fogão de lenha. Pouca mobília e quase nada de utensílios de cozinha. Do lado de fora, um peixe cortado em postas, a cabeça e rabo no lugar.

Dentro da casa, apenas a varanda e o corredor tinham piso cimentado. Os quatro quartos são de chão batido. Um deles acumulava caixas de isopor usadas para fazer o transporte dos ovos de tracajá. Pelo chão, cartuchos de munição de caça, vidros de esmalte e muitos DVDs.

Violência no campo

Os relatos da região falam da atuação violenta de fazendeiros, que expulsavam ou matavam ribeirinhos e posseiros para consolidar a grilagem de terras. Nessas histórias, os irmãos Torres são invariavelmente mencionados.

Formalmente, no entanto, nunca houve condenação por esses crimes. Em 40 anos, foram registrados 62 assassinatos no campo em São Félix, mas ninguém foi condenado, segundo a CPT (Comissão Pastoral da Terra). É o caso do massacre na fazenda Primavera, em setembro de 2003, quando oito trabalhadores rurais foram mortos em emboscada.

Reportagem da Folha na época traz o seguinte trecho de relatório do Ministério Público Federal (MPF): "João Cleber de Sousa Torres e Francisco de Sousa Torres (Torrim) são os comandantes do crime organizado na região de São Félix do Xingu. À frente da cúpula, agem e promovem a invasão, ocupação e grilagem de terras públicas; são donos da madeireira Impanguçu Madeira e Maginga. Pelo perigo que representam, são muito temidos na região".

No caso de Zé do Lago, o ambientalista estaria sendo pressionado por Torrim a vender a sua posse, onde morava havia cerca de 20 anos. Por telefone, o fazendeiro disse à Folha que o ambientalista morava dentro de sua área, mas que concordava com sua presença e nunca tentou expulsá-lo.

Informações levantadas pela ONG Greenpeace para um relatório sobre a situação fundiária de São Félix do Xingu mostram que Torrim fez um CAR (Cadastro Ambiental Rural) de 4.997 hectares em seu nome sobre a fazenda Barra do Baú e o terreno da família do Zé do Lago, mas o processo foi rejeitado pela Semas (Secretaria de Meio Ambiente do Pará) por estar sobreposto 99,9% a outro imóvel rural, não especificado. Trata-se de um indício de grilagem.

Após esse cancelamento, um novo CAR foi feito para mesma área, agora sob o nome da Agropecuária Barra do Baú Limitada, da qual Torrim aparece como sócio. Esse processo consta como "pendente".

Esse mesmo cruzamento de dados do Greenpeace revelou em dezembro que a fazenda Bom Jardim, do prefeito João Cleber, tem desmatamento ilegal e indícios de grilagem.

Os irmãos Torres têm um longo histórico de problemas nos tribunais. Em 2014, uma fiscalização encontrou três trabalhadores em situação análoga à escravidão na fazenda Bom Jardim, do prefeito. Em 2018, ele foi preso por suposto desvio de recursos públicos durante a sua primeira gestão.

Em 2016, os dois irmãos foram alvo de condução coercitiva pela Polícia Federal durante a operação Reis do Gado, que investigou um esquema de lavagem de dinheiro do então governador do Tocantins, Marcelo Miranda (MDB), por meio da compra de gado e de fazendas. Todos esses casos citados tramitam na Justiça.

Em 2018, quando foi candidato a suplente de deputado, João Cleber declarou R$ 6.955.000 em bens. Dois anos depois, em 2020, seu patrimônio chegou a R$ 15.233.128, um crescimento de 119% em apenas dois anos. A lista de bens inclui quatro fazendas, entre elas, Bom Jardim.

​Torrim disse que comprou a fazenda Barra do Baú em 2007, ano em que alega ter se encontrado pela primeira e única vez com Zé do Lago, que já morava na Cachoeira do Mucura. "Eu fui lá, vi ele lá e disse: ‘Pode ficar à vontade, não tem problema nenhum, você tem a minha permissão para ficar aqui'. Nunca tive um problema mínimo com ele".

"Ele ficava num cantinho lá, não fazia mal a ninguém, à minha pessoa. Eu nunca tive problema com ele", assegurou.

Sobre a situação fundiária da fazenda, Torrim afirma que fez o CAR em cima dos títulos de propriedade da área, registrados em cartório. Ele disse que comprou a terra "de um pessoal de São Paulo". Com relação à sobreposição identificada pela Semas, alegou que precisa consultar seu engenheiro. Sobre os relatos de envolvimento com crimes ligados a disputas fundiárias, o fazendeiro afirmou que se trata de boatos e que nunca foi condenado na Justiça.

Em entrevista por telefone, o prefeito João Cleber disse que não conhecia Zé do Lago pessoalmente e que prestou assistência à família após o assassinato. "Eu te garanto que nem eu, nem meu irmão nem ninguém da minha família não tem nada a ver com isso aí."

Quanto ao caso dos trabalhadores em situação análoga à escravidão encontrados em sua fazenda, o político disse que pagou indenização a todos.

Questionado sobre a evolução patrimonial, se irritou: "Tu é da Receita?." Em seguida, disse que incorporou propriedades e a herança do pai.

Com relação à operação Reis do Gado, disse que não teve nenhum envolvimento com o esquema.

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