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Legalização de jogos de azar exige cuidados contra lavagem de dinheiro, dizem especialistas

Liberação do jogo do bicho também levanta dúvidas sobre fortalecimento da criminalidade no Rio de Janeiro

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Rio de Janeiro

A legalização dos jogos de azar, prevista em texto-base aprovado na madrugada desta quinta-feira (24) pela Câmara dos Deputados, não representa um risco significativo de aumento de práticas de lavagem de dinheiro, contanto que acompanhada por mecanismos eficazes de controle e fiscalização. É o que afirmam especialistas em Direito Penal e segurança pública consultados pela Folha.

O projeto original, de 1991, foi assinado pelo deputado Renato Vianna (MDB-SC). Em sua retomada, o relatório ficou a cargo do deputado Felipe Carreras (PSB-PE), que fez uma série de concessões para tentar diminuir a resistência à proposta.

O texto-base foi aprovado por 246 votos favoráveis, contra 202 contrários, e seguirá para o Senado.​

A proposta busca regulamentar jogos de cassino, bingo, jogo do bicho, turfe [corrida de cavalo] e jogos online.

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Cassino flutuante em Buenos Aires, na Argentina - Eduardo Valente/FramePhoto/Folhapress

As atividades deverão ser reguladas e fiscalizadas pelo Ministério da Economia, que, para isso, poderá firmar acordos com órgãos federais, estaduais ou municipais. O Poder Executivo também fica autorizado a criar uma agência reguladora.

As entidades operadoras dos jogos deverão manter um sistema de gestão para registro e acompanhamento dos jogos, assim como dos pagamentos. O Ministério da Economia terá acesso ao servidor espelho e à base de dados desse sistema.

Segundo o texto, fica proibido o pagamento das apostas em cédulas ou moedas.

O substitutivo também impõe barreiras para que pessoas que tenham condenações por improbidade administrativa, sonegação fiscal, prevaricação, corrupção, peculato ou qualquer ilícito penal que vede o acesso a cargos públicos não possam exercer função em entidades operadoras dos jogos.

"Não vai ter como uma pessoa administrar um empreendimento de jogo se ela não for idônea. Além disso, a Receita Federal vai ter em tempo real toda movimentação de cada jogador. Qualquer indício de corrupção, de lavagem de dinheiro, o governo vai ter na palma da mão os instrumentos necessários para tomar as medidas cabíveis", afirma à Folha o relator.

Professor de Direito Penal na USP (Universidade de São Paulo), o advogado Pierpaolo Cruz Bottini não vê o risco de lavagem de dinheiro como um empecilho para a legalização, caso sejam instituídas medidas efetivas para coibir a prática.

"É preciso mudar a lei da lavagem para inserir os cassinos como entidades obrigadas a fazer a prevenção desse crime, e a comunicar o Coaf [Conselho de Controle de Atividades Financeiras] quando for identificada uma operação suspeita", diz.

Bottini defende a necessidade de regulamentar o que seria considerada uma operação suspeita nesse setor, como os operadores serão cadastrados e como as atividades dos clientes serão supervisionadas.

O advogado Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal na USP, concorda que é possível legalizar os jogos com mecanismos de controle eficientes. "A questão é saber se esse controle vai ser estabelecido de uma forma adequada, se haverá um acompanhamento sobre novas práticas [de lavagem de dinheiro] e, principalmente, se os cassinos vão cumprir seus deveres de registrar todas as operações realizadas por todos os clientes", diz.

Delegado aposentado e ex-chefe da Draco (Delegacia de Repressão ao Crime Organizado) no Rio de Janeiro, Cláudio Ferraz diz que apoia o projeto de lei, caso estruturado de forma correta, garantindo a fiscalização.

"Vai se tirar da informalidade uma atividade altamente comprometedora em termos de lisura, provocadora de corrupção. O Estado tem que se preparar para fiscalizar e investir os recursos, inclusive no próprio fortalecimento das instituições de controle", afirma.

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O deputado federal Felipe Carreras (PSB-PE), relator do projeto de lei que visa legalizar os jogos de azar no país - Divulgação

Presidente da Anfip (Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal), o jornalista e auditor fiscal aposentado Vilson Romero é contrário à legalização. Ele diz que os órgãos de fiscalização enfrentam uma carência de estrutura e que há o risco de o controle ser insuficiente.

"Não sei se há condições, de fato, para controlar 1 milhão de pessoas. Será que vamos ter um cadastro nacional de apostadores confiável? A Receita tem um déficit de mais de 5.000 auditores para fiscalizar 18 milhões de CNPJs. Imagina criar mais essa estrutura", diz.

Apoiadores do projeto defendem que a legalização geraria milhares de empregos e bilhões de reais em receita. Romero, por outro lado, argumenta que criaria incentivos para a lavagem de dinheiro, fomentaria redes de prostituição e tráfico de drogas e aumentaria o risco de ludopatia (vício em jogos).

O advogado Pierpaolo Bottini reconhece que falta estrutura ao Coaf, mas afirma que o Estado pode se adequar às necessidades. "O importante é estruturar o Coaf. Não precisa ser material, precisa de capacidade de processamento de dados. O cassino vai gerar impostos e uma parte disso poderia estruturar o órgão", diz.

A eventual legalização dos jogos de azar também suscita dúvidas sobre um possível fortalecimento de grupos violentos que existem em alguns lugares do país. É o caso do Rio de Janeiro, há décadas palco de disputas sangrentas pelo espólio de conhecidos bicheiros. Relações entre o jogo do bicho e as milícias também já foram levantadas por investigadores e publicadas na imprensa.

Historicamente, membros de grupos de extermínio, semente das milícias, costumavam fazer a segurança dos grandes bicheiros, lembra o sociólogo José Cláudio Alves, estudioso dos grupos paramilitares há mais de 20 anos.

"As milícias fazem parte desse histórico porque dominam quais são os territórios de cada um, os ganhos de cada um, e acabam se transformando também em um ator nesse cenário. Deixaram de ser apenas os que recebiam ordens e passaram a ter a sua própria voz, a se movimentar, principalmente quando há disputa dentro da família [pelo espólio]", diz.

Alves defende uma discussão mais aprofundada sobre o tema, e afirma que uma legalização dos jogos sem considerar esse cenário é temerária.

"É fácil dizer no papel que resolveu o problema. Mas uma legalização sem considerar quem é a estrutura de segurança pública, os milicianos, os grupos de extermínio, e como sempre atuaram ao lado do jogo do bicho, é algo muito temerário, inseguro. Não me dá nenhuma certeza que de fato vai conseguir controlar e beneficiar o bem público", diz.

O sociólogo alerta que a legalização pode representar o fortalecimento de uma estrutura e de grupos que hoje são ilegais. Alves lembra que os bicheiros sempre agiram por meio do suborno, e ressalta que eles poderiam colocar "laranjas" à frente dos negócios, simulando idoneidade.

"Eles não são controlados, não prestam conta, têm um universo próprio. Se não souber lidar com isso, vai fazer algo de fachada, não vai conseguir estabelecer um sistema de fiscalização e controle sobre eles. Facilmente vão poder burlar ou subornar", afirma.

Alves questiona, por exemplo, se as conhecidas famílias de bicheiros do estado aceitarão abrir mão dos negócios subitamente. "Eles vão simplesmente aceitar abrir mão dos seus ganhos? Ou vão permanecer dentro da estrutura do estado, com sua dimensão de suborno?".

O sociólogo também levanta dúvidas sobre a capacidade de órgãos de controle fiscalizar esses grupos.

"Hoje não se consegue, por exemplo, fazer monitoramento de ganhos de patrimônio dos grupos envolvidos com milícias, com tráfico de drogas, com jogo do bicho", diz. "Se não tem capacidade de monitorar relações com familiares, amigos, com gente que vão colocar como testa de ferro, não vão conseguir fazer isso numa estrutura legal. Precisaria haver um sistema muito bom para haver essa fiscalização."

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