Descrição de chapéu Obituário Deborah Paiva (1950 - 2022)

Mortes: Pintora transmutou dor em força criativa

Deborah Paiva, inspirada em Hopper, retratou pessoas sem rosto em obras que ecoam a solidão

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São Paulo

A artista plástica Deborah Paiva começou a se dedicar à pintura aos 38 anos, inspirada pelas obras de Anselm Kiefer, destaque da 19ª Bienal de São Paulo, em 1987, e de Iberê Camargo.

Nascida em Campo Grande em 1950, ela se mudou com a família para São Paulo ainda criança e se formou em história na USP. Apesar de nunca ter lecionado a disciplina, sempre esteve imersa no universo da docência. Primeiro, como sócia de um berçário, que se transformou em escola de ensino fundamental. Depois, como professora de pintura contemporânea em seu ateliê e no Instituto Tomie Ohtake.

A artista plástica Deborah Paiva (1950-2022) em seu ateliê em São Paulo - Silvia Zamboni - 29.fev.12/Folhapress

Depois de deixar a escola, estudou história da arte, com Rodrigo Naves, e pintura, com Carlos Fajardo. Suas telas dos anos 1990 e 2000, abstratas, eram "matéricas", como ela definiu em uma palestra no MAC (Museu de Arte Contemporânea) da USP, muito mais orientadas por uma preocupação formal que temática.

Em alguns trabalhos, Deborah aplicava tinta na tela e usava ferramentas como estilete e uma vassourinha de vaso sanitário —das antigas, de piaçava— para retirar os excessos e criar ranhuras. Ela pintava esculpindo, sintetizou um curador, centrando seu trabalho na textura das obras.

"Teatro das Operações", exposta em 2003, foi a primeira tentativa de produzir obras em séries temáticas. Impressionada com o contraste entre a onipresença das imagens da Guerra do Iraque na mídia e o distanciamento emocional das pessoas com a destruição do país, ela retratou ogivas e outros objetos bélicos.

Tudo mudou em 2010. Sua filha, Juliana, morreu de câncer aos 34 anos, depois de um longo tratamento. "Quando a minha irmã faleceu, o trabalho da minha mãe ganhou volume e criatividade. Ela tinha muita dor, porque seu trabalho deslanchou nesse período e se transformou", diz seu filho, o diretor de cinema e fotógrafo Rodrigo Moreira da Silva, 48.

Deborah contou que essa foi a hora da virada. A partir da série "Romaria", a abstração deu lugar a obras figurativas, que congelam momentos prosaicos do cotidiano de pessoas anônimas, retratadas com técnicas para despersonalizá-las.

A pintora encobre do olhar dos espectadores suas figuras humanas, que não tem rosto e olham para o infinito. Rodrigo, mesmo assim, afirma que era difícil não ver sua irmã em cada uma das telas.

Seus mestres, ela disse, foram Tim Eitel —"a solidão que se traduz através da luminosidade, sem ser passional ou alegórica"— e Edward Hopper —"a luminosidade dura que se traduz em uma solidão contida, silenciosa".

Sua dor, porém, não se transmutou em paralisia. Deborah continuou produzindo, expondo, dando aulas e se dedicando aos dois netos, João, hoje com 18 anos, e Pedro, 16, que ganhavam café da manhã da avó na cama.

A artista plástica foi colaboradora frequente da Ilustríssima, desta Folha, na última década. Suas paisagens arroxeadas, azuladas, esverdeadas e seus humanos de costas ou com o rosto borrado povoaram inúmeras páginas do caderno —poesia de Mia Couto, prosa de Elizabeth Bishop, ensaios sobre o STF e reportagem sobre rituais colombianos de lutas são alguns dos muitos textos que Paiva ilustrou.

Na pandemia, Deborah começou o tratamento contra um câncer de pulmão e teve que interromper suas aulas e parar de usar tinta a óleo, para evitar o contato com substâncias do material. Mesmo debilitada, passou a desenhar com guache e, em agosto de 2021, fez sua última exposição individual na galeria B-Arco, "Querência", nome do sítio onde passava as férias de Natal.

Uma de suas obras, "Amigos" (2012) também esteve na coletiva "MAC USP no Século 21: a Era dos Artistas".

Rodrigo, seu filho, se lembra da mãe como uma pessoa forte, sempre pronta para lidar com as circunstâncias da vida, e generosa com todos ao seu redor.

"A gente tinha uma casa em Boiçucanga. Era 1979 ou 1980. Não existia ainda a Rio-Santos, era estrada de terra. A gente tinha um Gurgelzinho que tinha que encarar o barro. Não esqueço: meu pai, cineasta, estava fazendo um filme fora. Estávamos eu, minha mãe e minha irmã, e tinha um atoleiro na estrada. Minha mãe, além de passar com o Gurgelzinho na lama, rebocou mais quatro carros. Esse era o jeito dela."

A pintora foi sepultada no cemitério do Morumbi, em São Paulo, na última quinta-feira (2). Ela tinha 72 anos.

Além de seu filho, Rodrigo, e seus netos, deixa o marido Jeremias Moreira da Silva Filho, 79, diretor de cinema. Deborah e Jeremias comemoraram 50 anos de casamento em março.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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