Descrição de chapéu
yanomami chuva

Divisor de águas

Ou emplacamos as causas da democracia, inclusão social e cuidado ambiental ou nossa sociedade e mesmo o planeta poderão afundar

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Renato Janine Ribeiro

Professor titular de ética e filosofia política da USP, é presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e ex-ministro da Educação (governo Dilma, 2015); escreve este artigo a título pessoal

A humanidade passou séculos ou até milênios com pouquíssimas, ou melhor, lentíssimas mudanças, dada a força da tradição. Basta lembrar que entre os primeiros registros históricos no antigo Egito e o ano zero se passaram 3.000 anos —enquanto, desde então, se passaram apenas 2.000. A era dos faraós ainda é mais extensa do que o período cristão.

As coisas foram se acelerando, especialmente nos últimos 250 anos, quando vivemos sucessivos e fortes divisores de água, praticamente um a cada geração, que exigem de nós respostas decisivas para nosso futuro como espécie e o do planeta: colonização vs. independência, escravatura vs. abolição, monarquia absoluta (ou ditadura) vs. república democrática, campo vs. cidade, agricultura vs. indústria, indústria vs. serviços, poluição vs. defesa do meio ambiente.

Retroescavadeira e agentes de resgate na área de deslizamento
Área devastada pela força dos deslizamentos causados por chuva histórica em São Sebastião, no litoral norte de São Paulo - Bruno Santos - 25.fev.2023/Folhapress

Hoje, estamos numa encruzilhada que posso resumir em: otimismo dos que creem na constante melhora das condições de vida (ver Harari, Pinker) vs. destruição das condições de vida humanas e talvez planetárias. O golpe malogrado de 8 de janeiro, a descoberta do massacre dos yanomamis e, agora, as tempestades no litoral paulista dão particular gravidade a este momento.

Por um lado, nunca tivemos condições de vida tão auspiciosas. A expectativa de vida ao nascer, hoje, é quase o dobro da de 1900. Uma doença como a varíola, que eliminou pelo menos 300 milhões no século 20, não mata ninguém há 40 anos. Doenças banais perderam sua letalidade. O nível de vida melhorou quase no mundo todo. A fome foi vencida em muitos países e nos próximos anos devemos sair de novo do Mapa da Fome, que deixamos no governo Dilma e ao qual voltamos depois, pela ação dos últimos governos.

Esse é o mundo descrito por Yuval Harari, Steven Pinker e os "melhores anjos de nossa natureza".

Por outro lado, a poluição aumenta de maneira assustadora, o aquecimento global distribui secas e inundações pelo planeta, os jovens têm mais dificuldade que seus pais de encontrar trabalho e moradia: embora hoje meio ambiente, direitos humanos e inclusão social estejam nos programas de ação dos governos decentes do mundo, as dificuldades para respeitá-los são grandes.

Em tese, a escolha seria simples. Quem, com dois neurônios ou com um coração minimamente bom, deixaria de escolher prosperidade, justiça social, equilíbrio ambiental? Mas sabemos que não é assim. Saímos de um governo negacionista, que desrespeitou a saúde e vida dos nossos indígenas e populações vulneráveis, que fez campanha pela Covid e não contra ela, que desprezou as questões ambientais. E quase metade da população votou nele.

A escolha pelo lado decente não é fácil. Eu não uso o termo "tragédia" para crimes com causas e autores, como o massacre dos yanomamis ou a chacina da Boate Kiss. Mas o que dizer da tempestade inédita que se abateu sobre São Sebastião e adjacências? Ela é fruto tanto do descaso ambiental, que se dá no âmbito do planeta, quanto do perfil elitista de nossa sociedade, que expulsou os caiçaras para encostas perigosas.

Como disse no começo, estamos ante um novo divisor de águas. Ou emplacamos as causas da democracia, saúde, educação, inclusão social, cuidado ambiental, ciência e cultura, ou nossa sociedade e mesmo o planeta poderão afundar. Esta escolha não deveria ser muito difícil.

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