Descrição de chapéu chuva

Metro quadrado na praia custa quase 12 vezes o da área da tragédia no Sahy

Distância entre um e outro é de 700 metros; disparidade de um lado e de outro da Rio-Santos reforça desigualdade social

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Rua atingida por deslizamento de terra na Vila Sahy, em São Sebastião; região em área de praia badalada é uma das marcadas por enorme desigualdade habitacional no município Bruno Santos - 21.fev.23/

São Paulo e São Sebastião (SP)

De um lado da rodovia Rio-Santos, mar ao fundo, não é difícil achar lotes à venda por mais de R$ 1 milhão e uma oferta variada de casas luxuosas com preços acima de R$ 5 milhões. Do outro, a menos de 1 km de distância, famílias moram em condições precárias, muitas vezes à espera de regulamentação fundiária ou em áreas de risco.

A disparidade social em São Sebastião, cidade do litoral norte paulista onde mais de 50 pessoas morreram por causa de deslizamentos provocados pelas fortes chuvas do último fim de semana, pode ser medida no bater dos olhos e em números oficiais.

A última atualização, em 2013, da Planta Genérica de Valores da Prefeitura de São Sebastião, usada para calculo do valor venal do lote e da cobrança de IPTU (Imposto Predial, Territorial e Urbano), revela a diferença no metro quadrado de terrenos em uma mesma região da Costa Sul.

Na travessa São Jorge, por exemplo, ligação a entre vias mais afetadas pela tragédia na Vila Sahy (ruas Zero e Um), o metro quadrado de referência da prefeitura é avaliado em R$ 70. A cerca de 700 metros dali, na avenida Adelino Tavares, perto da praia na Barra do Sahy, ele salta mais quase 12 vezes, para R$ 800.

Nas áreas nobres da praia da Baleia e no Juquehy, o valor salta para R$ 1.200 o m², o mais alto na cidade.

Quando se avalia os preços cobrados pelas imobiliárias, os valores disparam. Um lote de frente para o mar, de 680 m², na avenida Deble Luíza Derani, Praia da Baleia, está anunciado pela internet por R$ 3,9 milhões, ou seja, nesse caso, o metro quadrado sai a R$ 5.735 —para cálculo do valor venal nessa via, segunda a prefeitura, a referência é R$ 660 o m².

Para especialistas ouvidos pela reportagem, a especulação imobiliária de médio e alto padrão na orla, em crescimento desde a década de 1980, aliada à falta de investimento em habitações populares, empurrou a classe mais pobre do município para o pé e alto de morros do outro lado da rodovia.

Sem condição financeira de disputar terrenos nas áreas planas e mais próximas ao mar, o pedreiro Edivaldo Santos Silva, 41, construiu seis casas nas vielas que sobem morro acima na vila do Sahy, das quais cinco foram destruídas quando a encosta desabou no último domingo (19).

Borracha, como é conhecido pelos vizinhos, estava em um dos imóveis e só não morreu porque acabou sendo protegido pela geladeira que ficou prensada no canto de uma parede, segundo a irmã, a doméstica Edivânia Maria da Silva, 41, moradora da casa que resistiu ao deslizamento.

A família saiu de Pernambuco há 25 anos. Como quase todos que moram na localidade que antes era chamada de Vila Baiana, foi atraída pela oportunidade de prestar serviços braçais nas casas de alto padrão, pousadas e restaurantes da região. "Eu achava que era seguro morar aqui porque está no morro", disse a doméstica. "Teve uma época que estava embargada [a construção no local], mas depois foi liberada pela prefeitura", afirmou.

Um parecer técnico de 2021 do CAEx (Centro de Apoio Operacional à Execução), do Ministério Público, apontou que São Sebastião, assim como outros municípios do litoral norte paulista, apresenta, como consequência de seu processo de urbanização, problemas decorrentes da ocupação irregular do solo.

Eles se mostram tanto na construção de empreendimentos de alto padrão e de segunda residência ou veraneio, quanto em invasões ou loteamentos irregulares ocupados por população de baixa renda. Ambos causam impactos urbanísticos e ambientais.

A situação, diz o MP, se agrava por falta de infraestrutura pública nas áreas impróprias para edificação ou de proteção ambiental, particularmente nos assentamentos de baixa renda onde há maior precariedade e vulnerabilidade social.

Em nota, a Prefeitura de São Sebastião diz que o governo do estado assinaria ainda nesta sexta (24) decreto de utilidade pública para desapropriação de áreas para edificação.

"Vilas de passagem, modulares e mais rápidas de serem entregues, funcionarão como um pulmão habitacional para agilizar o fluxo de remoção e alocação destas famílias [de áreas de risco], até que as moradias definitivas fiquem prontas", afirma.

Migração

"Como São Sebastião não tinha mão de obra para a construção civil na época, pessoas de fora vieram para trabalhar na cidade e foram morar nas costas desses condomínios, ou seja, na mesma região, mas do outro lado da Rio-Santos, inclusive em áreas de alagamentos", afirma o vereador Ercílio Souza (PV).

Muitos desses migrantes compraram áreas invadidas na Mata Atlântica, facilitadas por falta de fiscalização, diz o parlamentar.

"Há um extrativismo urbano" afirma Valter Caldana, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo do Mackenzie e do laboratório de políticas públicas da universidade.

Em 2015, a equipe de Caldana liderou, a pedido da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), do governo estadual, um estudo urbanístico para a Vila Sahy, que alertava para a necessidade de transferir 180 famílias de áreas de risco para conjuntos habitacionais em áreas com infraestrutura no município, inclusive de transporte, além da reurbanização da parte plana do bairro.

Mas o alerta ficou apenas no papel. Segundo o governo do estado, o trabalho era apenas um estudo acadêmico, e não um projeto, realizado por meio de cooperação internacional entre estudantes franceses e brasileiros.

Há desde 2017 um projeto da CDHU de reurbanização e de reassentamento de famílias da Vila Sahy em uma área na Barra do Sahy, que foi retomado em 2021 e com custos previstos para serem absorvidos pela gestão estadual, mas que também não andou.

Em outubro do ano passado, por meio de requerimento, o vereador Marcos Antonio do Carmo Fuly (DEM), atual presidente da Câmara, questionou-se porque a assinatura do convênio com a CDHU estava parada na prefeitura. Em resposta, também em ofício, o prefeito Felipe Augusto (PSDB) disse que não havia prazo.

Procurado por telefone e por mensagem, o prefeito não atendeu nem respondeu à reportagem. Ao UOL, Augusto afirmou que há dois anos cerca de 500 moradores de classes média e alta barraram a construção de 400 casas populares em Maresias, também na Costa Sul. À colunista Mônica Bergamo, os moradores negaram a informação do chefe do Executivo. "Não é verdade. Nunca fomos contra esse projeto", diz Eliseu Arantes, que presidia a Sociedade Amigos de Maresias (Somar) em 2020.

Em 2018, o IPT (Instituto de Pesquisas Tecnológicas) mapeou em São Sebastião 52 áreas com possibilidade de desabamento, sendo 16 delas, com 161 moradias, de alto risco. Ao todo, 2.043 casas estavam nestas regiões.

"Estudos mais aprofundados podem apontar que obras de engenharia nestes locais assistiriam algumas famílias, mas, seguramente, temos que falar na produção de 500 a mil unidades habitacionais só para áreas de risco em São Sebastião", afirma o deputado federal Fernando Marangoni (União Brasil), secretário Executivo de Habitação do estado nos governos João Doria (sem partido) e Rodrigo Garcia (PSDB), que critica a morosidade para regularização fundiária na cidade.

Em nota, a Secretaria Estadual de Desenvolvimento Urbano e Habitação confirma que não houve execução de projeto de urbanização em São Sebastião.

A pasta afirma que o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) determinou um plano urbanístico amplo para eliminar riscos geológicos e transformar a Vila Sahy em bairro modelo de urbanização, com recuperação ambiental, contenção de reocupação, implantação de infraestrutura e equipamentos públicos.

Segundo a prefeitura, já há uma área designada pelo governo do estado na região da Vila Sahy para construção de 180 unidades de moradia, bem como áreas identificadas em Maresias, Barequeçaba, Topolândia e Barra do Una.

"De acordo com a defesa civil estadual e municipal, há 86 setores de risco no município de São Sebastião. A estimativa do número de pessoas que deverão ser removidas será apresentada pela Defesa Civil após a conclusão do estudo de área, que acontece bairro a bairro", diz trecho da nota da prefeitura.

Para o urbanista Caldana, municípios da região devem se planejar para enfrentar o problema que tende a crescer com a duplicação da rodovia dos Tamoios, principal acesso ao litoral norte.

"Mas é preciso mudar a mentalidade do setor privado também", afirma. As pessoas que "consomem a natureza", diz, devem ser conscientizar que não podem destruir esse patrimônio.

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