Descrição de chapéu yanomami

Mães yanomamis deixam rituais e aconchego da comunidade para parto na cidade

Equipes de saúde constataram aumento de desnutrição e malária entre grávidas, com complicação no nascimento e formação do bebê

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Boa Vista

A antropóloga e pesquisadora Alcida Rita Ramos, professora da UnB (Universidade de Brasília), teve um convívio prolongado com os indígenas sanumás, um subgrupo dos yanomamis que fica mais ao norte da terra indígena, já na fronteira com a Venezuela.

"Lá aprendi que o nascimento é um acontecimento dos mais importantes na vida das aldeias, tratado com muita pompa e circunstância e, acima de tudo, com muita reserva", afirma Ramos.

Quando sente que é a hora do parto, a mulher deixa sua casa e vai para um lugar próximo na mata, acompanhada de outras mulheres da família mais velhas e experientes. Em caso de complicações, um xamã acompanha e evoca espíritos.

"Esse momento difícil na vida da mulher é cercado dos cuidados e aconchego dos parentes próximos, que enchem a parturiente de conforto psicológico e de palavras de encorajamento", explica a antropóloga da UnB. "Ela nunca é deixada sozinha, a menos que seja mulher madura. A criança que nasce é, na verdade, filha da comunidade inteira."

A fisioterapeuta Manoella Dias Barbosa cuida de um bebê yanomami recém-nascido na UTI do Hospital Materno Infantil, em Boa Vista - Lalo de Almeida/Folhapress

Para muitas mulheres yanomamis, o aconchego e os rituais na hora do parto não existem.

Em 2022, ano em que os mais de 20 mil garimpeiros ilegais atingiram a exploração máxima de ouro na Terra Indígena Yanomami, a maior do Brasil, equipes de saúde do DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Yanomami transportaram em aviões 82 mulheres indígenas que precisaram de socorro médico com urgência no HMI (Hospital Materno Infantil) em Boa Vista.

Isso significa que houve, em média, o transporte aéreo de uma mulher yanomami, para longe de um local de aconchego, acolhimento e coragem na hora do parto, a cada quatro dias e meio.

Profissionais de saúde que atuam no transporte dessas indígenas afirmam que houve um aumento da desnutrição e da malária entre mulheres grávidas, com reflexo nos partos –mais prolongados, ou prematuros, ou com uma alta incidência de abortamentos–, na saúde da mulher e no desenvolvimento dos bebês.

O estímulo e a conivência do governo Jair Bolsonaro (PL) com o garimpo ilegal fizeram explodir os casos de malária e de desnutrição grave na terra yanomami. O adoecimento dos indígenas também ocorreu por desassistência em saúde ao longo da gestão de Bolsonaro.

Um inquérito foi aberto pela PF (Polícia Federal) para investigar crime de genocídio. Serão investigados garimpeiros e operadores da logística do garimpo, coordenadores de saúde indígena no governo passado e agentes políticos, o que pode incluir o próprio ex-presidente.

No dia 20, o governo Lula (PT) declarou emergência em saúde pública na terra indígena.

O garimpo ilegal avançou tanto que chegou até a região onde estão os sanumás, no extremo norte do país, na fronteira com a Venezuela.

Em Auaris, uma das duas regiões mais atingidas pela crise sanitária e de saúde, há comunidades onde vivem os sanumás. A outra região fortemente impactada é Surucucu, onde há um PEF (Pelotão Especial de Fronteira) do Exército e uma unidade de saúde que vem concentrando os atendimentos médicos durante o período de emergência. Nas duas regiões, estão 5.800 yanomamis.

No fim da tarde de terça-feira (31), a UTI neonatal do HMI abrigava quatro bebês yanomamis. Não há informação sobre existência ou não de relação entre o quadro de saúde das crianças e a saúde das mães, nem sobre a saúde das mulheres.

As mulheres grávidas da terra yanomami só são levadas ao HMI em último caso, segundo profissionais de saúde do hospital.

A reportagem visitou o HMI. Segundo os dados repassados pela diretoria, houve 13 casos de malária e quatro de desnutrição grave entre gestantes yanomamis atendidas ao longo de 2022.

Entre os bebês na UTI neonatal estava uma menina sanumá nascida em novembro. Segundo a equipe médica, ela receberia alta médica e seria encaminhada à Casai (Casa de Saúde Indígena) Yanomami.

Outra bebê yanomami internada na UTI pesa 1.535 gramas. Nasceu no último dia 29, após uma gestação de 36 semanas, segundo a ficha da paciente anexada ao casulo de plástico onde ela passa os dias. A criança ainda precisa de oxigênio para respirar.

Em uma outra ala, uma mulher yanomami sozinha, sentada numa cadeira, abrigava no colo o filho nascido no último dia 11. Ela não estava em uma ala específica para indígenas. Com a ajuda de um integrante da equipe de saúde, que fala um pouco de yanomami, ela dizia estar com saudade de casa e com vontade de ir embora.

A mulher é da região de Surucucu e ficou dois dias num processo incompleto de parto. Chegou a haver uma declaração de óbito fetal. Ninguém esperava mais os batimentos cardíacos. A criança nasceu viva.

A reportagem da Folha detalhou a Ramos, antropóloga da UnB, a realidade dessas mulheres e crianças, que precisam deixar seu território para a condução do parto num hospital comum em Boa Vista.

"Tendo vivido sempre no meio de tanta segurança e conforto social, como se espera que uma parturiente yanomami se sinta no ambiente estéril e hostil de um hospital de ‘brancos’, cercada de gente que, via de regra, repudia a existência dos indígenas?", questiona a pesquisadora.

"É como se ela percebesse a hostilidade em estado sólido e o pânico se instala com a inevitável dúvida aterrorizante: o que vão fazer com o meu bebê."

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