Suíça impõe tratamento compulsório a agressores de mulheres

Desde 2020, tribunais do país podem exigir que homens frequentem programas de educação contra violência doméstica

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Céline Zünd
LE TEMPS

O primeiro programa para perpetradores de violência doméstica foi lançado na Suíça no final dos anos 1980. Foi preciso esperar até o início dos anos 2000, após a criação de sete programas em cinco anos, para poder dizer se a iniciativa traz resultados.

Hoje quase todos os cantões suíços contam com uma unidade dedicada ao tratamento daqueles que cometerem violência contra familiares ou parceiras íntimas. Mas dentro do combate maior à violência, o tratamento dos agressores é algo pouco conhecido.

Participantes se reúnem com psicólogos e discutem seus problemas de forma confidencial e sem julgamento
Todas as segundas-feiras à noite, no SAVC (Serviço para Autores de Violência Doméstica), em Neuchâtel, os participantes se reúnem com psicólogos e discutem seus problemas de forma confidencial e sem julgamento - Benjamin Tejero/Le Temps

"Dada a falta de recursos, a prioridade é proteger as vítimas", diz Anne Le Penven, secretária-geral da Associação Profissional Suíça de Consultas contra a Violência (APSCV).

"Faz sentido quando sabemos quanto as associações tiveram que lutar inicialmente para conseguir recursos. As autoridades governamentais ainda lutam para enfrentar o problema. Do ponto de vista político, dar atendimento aos perpetradores de violência não é algo que traz votos. Mas se não fizermos mais por eles, não vamos chegar à raiz do problema."

A relutância que ela explica é alimentada por uma espécie de tabu: "Existe um medo de dar espaço demais aos perpetradores. Mas o objetivo do tratamento não é dar uma plataforma a eles, e sim levá-los a assumirem a responsabilidade e, em última análise, evitar reincidências".

Durante muito tempo os tribunais raramente cogitavam em ordenar terapia para os perpetradores. De acordo com a APSCV, de 10.879 pessoas registradas pela polícia em 2020, apenas 8,4% foram encaminhadas para terapia.

Mas a situação está mudando. A revisão da lei federal sobre a melhoria da proteção às vítimas de violência, em vigor desde 2020, levou ao aumento nos encaminhamentos para programas de educação sobre violência doméstica.

Lei permitiu que os tribunais ordenassem tratamento compulsório para réus quando um caso é suspenso
Lei permitiu que os tribunais ordenassem tratamento compulsório para réus quando um caso é suspenso - Benjamin Tejero/ Le Temps

Antes, a pedido da vítima as autoridades podiam suspender um processo por lesões corporais, ameaças, agressão física ou coerção entre cônjuges e companheiros. E a maioria dos processos por violência doméstica acabava assim, sendo então arquivados.

Desde que a lei foi emendada, os critérios ficaram mais rígidos: para que um tribunal possa suspender um processo é preciso não apenas que a vítima o solicite abertamente, mas também que a decisão tenha o objetivo de estabilizar ou melhorar a situação da vítima.

Além disso os juízes podem exigir que o perpetrador faça um "programa de prevenção" que visa reduzir o risco de mais violência.

"Por muito tempo se pensou equivocadamente que o atendimento psicoeducacional ou terapêutico não teria efeito se fosse imposto. Essa visão está mudando. Feedback recebido indica que os tribunais vêm fazendo uso maior dessa ferramenta", disse Véronique Jaquier Erard, professora do Centro de Pesquisas em Criminologia (CRRC). E quando os programas para perpetradores são usados com mais frequência, ficam mais profissionalizados.

Vários cantões suíços, incluindo Vaud, Genebra e Valais, também preveem uma entrevista socioeducacional obrigatória sempre que um perpetrador é expulso da residência comum. Isso evidentemente levou a um aumento grande no número de consultas iniciais. Mas o engajamento terapêutico de longo prazo é mais raro.

Cifras apresentadas no cantão de Vaud no início de 2021 mostram que apenas 30% dos perpetradores aceitam comparecer a uma segunda ou terceira sessão de terapia. É ainda menor a parcela dos que fazem o programa completo.

Mas estudos tendem a indicar que esses programas têm resultados positivos, mesmo quando são impostos. O mais recente desses estudos vem de Zurique.

Em junho de 2021 o Gabinete de Implementação de Sentenças de Zurique apresentou os resultados de uma comparação entre homens que haviam participado de pelo menos dez sessões de um programa de prevenção entre 2011 e 2016, outros que não receberam nenhum atendimento e um terceiro grupo formado por homens que abandonaram a terapia antes de concluída.

Nos anos seguintes à medida, o índice de reincidência entre os participantes no programa de prevenção de violência caiu para 4,7%, contra 17,4% no grupo de pessoas que não participam do tratamento. Essa avaliação reflete apenas ocorrências registradas pela polícia; logo, não abrange agressões não denunciadas. Mas os resultados da avaliação são claros: o programa de Zurique corta reduz a reincidência em mais da metade, pelo menos inicialmente.

O mesmo estudo também calculou a razão custo-benefício desse tipo de medida preventiva. Um caso de reincidência chega a 150 mil francos suíços (pouco mais de 150 mil euros), segundo avaliação do Birô Federal de Igualdade de Gênero (BFEG), que leva em conta os custos diretos e indiretos de um ato de violência doméstica. Um programa terapêutico custa entre 3.200 e 4.100 francos.

Conclusão: a participação de cem pessoas nesse tipo de medida resultaria em uma economia de cerca de 1,4 milhão de francos.

"Se o programa é compulsório, isso elimina o abandono, que é frequente entre participantes voluntários", destaca Véronique Jaquier Erard, que estudou a avaliação dessas medidas em nome do BFEG.

Suas conclusões: "A criação de grupos de terapia para perpetradores de violência doméstica é eficaz. Mas a terapia em grupo não é adequada para todos. Os participantes precisam ser corretamente selecionados, e os serviços precisam ser avaliados para assegurar que atendam às necessidades dos participantes. Muitas vezes os profissionais não têm recursos suficientes para analisar o trabalho que fazem", diz Véronique Jaquier Erard.

A polícia usada como intermediária

Em Neuchâtel, um cantão com 176.245 habitantes, o trabalho do Serviço para os Autores de Violência Conjugal (SAVC), unidade dedicada aos perpetradores de violência doméstica, é realizado por quatro pessoas.

Como ainda é o caso de muitos desses programas, o financiamento da unidade foi inicialmente de origem privada, sendo garantido pela Loteria Romande e a empresa de tabaco Philip Morris. Desde 2011 a unidade é filiada ao Centro Psiquiátrico de Neuchâtel (CNP) e seus serviços são reembolsados pelo seguro-saúde.

O desafio principal para os responsáveis é entrar em contato com aqueles que necessitam de seus serviços. O SAVC trabalha em colaboração com a polícia de Neuchâtel. Durante as intervenções, os policiais mandam à entidade os dados de contato dos perpetradores de violência doméstica, com o consentimento destes.

A psicóloga Hilde Stein ajudou a fundar o SAVC em 2006. "No cantão de Neuchâtel há cerca de uma intervenção policial por dia por violência doméstica. Deveríamos estar atendendo mais de 300 pessoas por ano. Mas a grande maioria dos perpetradores se nega a ser contatada. Em 2022 trabalhamos com 99 pessoas. É uma gota no oceano, mas acho que é muito importante, mesmo assim. Cada vez que temos uma pessoa diante de nós, estamos plantando uma semente."

Independentemente das razões que os levam à terapia, todos os participantes precisam cumprir uma condição antes de poderem entrar no grupo: reconhecer sua responsabilidade. "Não trabalhamos com uma pessoa que esteja em negação total. A pessoa precisa no mínimo reconhecer que esteve envolvida no problema. Num primeiro momento, muitos dizem que sua presença ali é um mal-entendido."

A grande maioria dos perpetradores viveu em um ambiente familiar abusivo. "É um mecanismo de defesa", diz Hilde Strein. "Mas nós, na terapia de grupo, não nos fixamos no status de vítima. Enfocamos o comportamento deles."

Nesse contexto, a terapia de grupo uma ferramenta poderosa para a pessoa encarar a si mesma, observa a terapeuta. "Os participantes passam a entender que o que fizeram não é aceitável. Eles progridem quando ouvem. Refletem sobre seus atos sem necessariamente precisar verbalizar isso. Encontram apoio e pessoas com quem celebrar seu progresso. Nem todos vão sair transformados. Mas o grupo cria uma dinâmica de autocura."

Depoimento

'Tenho as ferramentas para me ajudar a recuar um passo'

Obrigado a participar de terapia de grupo depois de cometer violência contra sua parceira, em um primeiro momento Thierry* pensou que não tinha nada em comum com os outros participantes.

Se Thierry foi à terapia de grupo do SAVC todas as segundas à noite, foi apenas porque um promotor ordenou que ele fizesse o programa e porque ele poderia perder muito se não obedecesse, após um "segundo episódio de violência doméstica", em suas palavras.

O primeiro ocorreu quatro anos atrás. "Dei tapas em minha mulher durante uma discussão. Ela deu queixa à polícia", contou o mecânico de 40 e poucos anos. Na época, as autoridades encaminharam Thierry à terapia. Ele não achou que precisasse.

Na segunda vez ele não teve escolha: sentenciado a quatro meses de prisão e quatro anos de liberdade condicional, o programa para perpetradores de violência doméstica não era mais opcional. Tornara-se obrigatório, assim como outras regras de conduta, como abrir mão do álcool. "Eu tinha bebido quando aconteceu", ele explica.

Era o começo do inverno. Sua mulher desconfiava que ele lhe fosse infiel, e por várias semanas Thierry vinha se sentindo "empurrado até o limite". Ele falou do fato de ter seu celular monitorado e de ser criticado diante de seus filhos e amigos. Quando o casal estava voltando de casa depois de tomar um aperitivo, tiveram uma nova briga. Ele deu um soco na boca de sua mulher. Durante a briga, ela acabou no chão.

No início Thierry participou das sessões de terapia de grupo com relutância. Resignado, tentava "aproveitar o que podia", mas não conseguia se livrar da impressão de que aquele lugar não era para ele. "Alguns desses homens são uns doentes. Eles quebram tudo e batem nas esposas com frequência. Eu não era nada como eles. Mas então chegaram outros homens com uma história semelhante à minha. Eu sentia que estava ali por engano. Nossos problemas poderiam ter sido resolvidos entre nós, em casa, em vez de chamar a polícia."

As sessões não produziram uma mudança fundamental em seu modo de pensar. Thierry ainda acha que sua esposa também deveria fazer terapia. "Ela sabe o que dizer para me ferir. E eu aceito." Com o tempo, porém, o programa acabou por ajudá-lo. "Hoje, quando a situação esquenta com minha mulher e meus filhos, em vez de gritar, procuro recuar um passo. Tenho ferramentas."

*O nome foi alterado.

Traduzido por Clara Allain.

Esta reportagem está sendo publicada como parte do projeto "Towards Equality", uma iniciativa internacional e colaborativa que inclui 14 veículos de imprensa para apresentar os desafios e soluções para alcançar a igualdade de gênero.

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