Descrição de chapéu Cracolândia drogas

Dificuldade de deslocar mil pessoas por 2 km fez Tarcísio desistir de mudar cracolândia de lugar

Distância separa o Bom Retiro da Santa Ifigênia, onde atualmente estão concentrados os usuários de drogas no centro de SP

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São Paulo

A logística necessária para deslocar cerca de mil pessoas pelos cerca de dois quilômetros que separam a Santa Ifigênia e o Bom Retiro, ambos na região central de São Paulo, fez o governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) desistir da ideia de mudar a cracolândia de lugar.

O recuo foi confirmado pelo governador nesta quinta (20), um dia após ele anunciar a estratégia durante agenda ao lado do secretário de Segurança Pública, Guilherme Derrite.

Em entrevista à TV CNN, o Tarcísio disse que iria voltar atrás porque a ideia não funcionaria. "Sou humano. Não tenho problema de corrigir o caminho", disse.

O plano da gestão estadual era transferir os usuários que hoje estão concentrados na rua dos Gusmões, na Santa Ifigênia, para o entorno do Complexo Prates, que reúne equipamentos de assistência social no no Bom Retiro. O trajeto a pé entre os dois pontos tem cerca de 2km.

Trecho da rua dos Gusmões esquina com a avenida Rio Branco concentra a cracolândia em São Paulo
Trecho da rua dos Gusmões esquina com a avenida Rio Branco concentra a cracolândia em São Paulo - Jardiel Carvalho - 19.jul.23/Folhapress

O governador mudou de ideia após sobrevoar a região da cracolândia na manhã desta quinta-feira, algo que tem feito com certa frequência.

O anúncio da remoção seguido pelo recuo ocorreram após o ele ter se calado sobre a tentativa frustrada de levar os usuários de drogas para o espaço debaixo da ponte Governador Orestes Quércia, conhecida como Estaiadinha, há cerca de dez dias. Tarcísio também não comentou publicamente outra operação policial deflagrada após grupo de frequentadores da cracolândia depredar um carro da Polícia Militar, um ônibus e um caminhão de bebidas na região central três dias depois.

Remover a aglomeração de usuários de drogas da região central de São Paulo para outros locais na cidade, além de não resolver o problema, espalha a degradação e a sensação de insegurança, dizem especialistas ouvidos pela Folha.

As opiniões são unânimes em afirmar que não existe uma única solução para minimizar o impacto social que se arrasta há mais de 30 anos na capital paulista, e todas as sugestões passam pela criação de políticas públicas nas áreas de saúde, assistência social e moradia.

Para Guaracy Mingardi, membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, essas políticas públicas se traduzem, por exemplo, em ações de repressão ao tráfico e à receptação de celulares roubados e também de fios furtados. "Isso ajudaria a diminuir a sensação de insegurança trazida pela série de roubos e furtos na região", diz. "Mudar a cracolândia de lugar é só transferir o problema para outra região que também vai ter moradores e comerciantes impactados", continua.

Na opinião da urbanista Margareth Uemura, coordenadora do Instituto Pólis, a cracolândia é um problema de saúde pública associado à falta de moradia e de assistência social e, por isso, a mudança de endereço não pode ser vista como uma solução. "Aquela situação não é adequada para ninguém, nem para quem está na rua e nem para quem vive e trabalha no entorno. Espaço público não é lugar para as pessoas morarem", continua.

Além disso, a urbanista ressalta que qualquer tipo de tentativa de remoção dos usuários de drogas pode resvalar em cenas de violência.

Com a permanência da cracolândia na região central há mais de 30 anos, o local se tornou atrativo para os usuários de drogas por causa de uma espécie de ecossistema formado ao longo dos anos. No entorno funciona uma série de ferros-velhos que trocam materiais recicláveis recolhidos, em maior parte, por moradores de rua, por dinheiro. No caso dos dependentes químicos, os pagamentos são usado por eles para comprar pedras de crack.

Há também muitos imóveis antigos e abandonados que foram transformados em pensões e hotéis que servem de esconderijo para os traficantes donos de barracas de vendas de drogas na cracolândia. Esses endereços também são usados por clientes que pagam para consumir as pedras de crack fora da aglomeração na calçada.

Para o urbanista Anderson Kazuo, há mais um elemento a ser levado em conta nessa movimentação proposta, e depois desconsiderada, pelo governador de levar a aglomeração de usuários de drogas para o Bom Retiro. "É um procedimento clássico de deslocamento de grupos indesejáveis para se promover uma higienização para estimular investimentos do setor imobiliário", diz.

Ele enxerga relação da proposta de movimentação com duas outras iniciativas estaduais e municipais. Uma é a proposta de levar a sede do governo paulista para o centro da cidade e a segunda é o PIU (Projeto de Intervenção Urbana) Central, que pretende requalificar e melhorar o viário da região central. "Existe a promoção de um processo de elitização e limpeza do centro para que se torne um atrativo para o mercado imobiliário e obtenção de lucro", diz Kazuo.

O urbanista lembra que os dois projetos remontam a outra iniciativa parecida sugerida durante a gestão do ex-prefeito Gilberto Kassab (PSD) de criar a Nova Luz para requalificar o entorno da estação da Luz como uma forma de atrair investimentos.

A proposta, porém, foi engavetada com o fim da gestão Kassab —o ex-prefeito hoje é secretário de Tarcísio. "A cidade vai se tornando um lugar de negócios lucrativos e se perde o interesse público e a qualidade urbanística", avalia Kazuo.

O psiquiatra Dartiu Xavier, ex-coordenador do programa anticrack da gestão Fernando Haddad (PT), De Braços Abertos, também criticou a tentativa de remoção. "Isso leva a medidas truculentas para remover os usuários e acabam se formando cracolândia menores e pulverizadas no bairro escolhido", diz.

Ele conta que a criação de um espaço de uso seguro é uma das soluções adotadas por governos internacionais com sucesso. Se trata de um espaço público para uso controlado de drogas e equipado com assistência de saúde e social.

"No Brasil, essa ideia ainda esbarra em muito preconceito e é encarada como se fosse uma apologia ao uso de drogas sendo que é apenas uma forma de não incomodar os moradores e garantir a privacidade dos usuários", diz. "O consumo de drogas é consequência da miséria social, e não o contrário", continua.

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