Em votação relâmpago, o plenário do Senado aprovou nesta quarta-feira (27) o projeto de lei do chamado marco temporal para a demarcação de terras indígenas, menos de uma semana após a tese ser derrubada em decisão do STF (Supremo Tribunal Federal).
A aprovação em regime de urgência, por 43 votos a 21, ocorreu cinco horas depois da discussão na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) —onde o placar foi de 16 votos a 10. O texto vai agora para sanção ou veto do presidente Lula (PT).
O projeto foi aprovado pela Câmara dos Deputados em maio com apoio da bancada ruralista e do presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), como parte da ofensiva do Congresso contra o STF.
A tese do marco temporal determina que as terras indígenas devem se restringir à área ocupada pelos povos na promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988. Assim, indígenas que não estavam em suas terras até a data não teriam direito de reivindicá-las.
Na quinta (21), a tese foi declarada inconstitucional pelo Supremo por 9 votos a 2. Movimentos indígenas argumentam que, em 1988, seus territórios já haviam sido alvo de séculos de violência e destruição, e que as áreas de direito dos povos não deveriam ser definidas apenas por uma data.
Por outro lado, ruralistas defendem que tal determinação serviria para resolver disputas por terra e dar segurança jurídica e econômica. A posição foi endossada no STF pelos ministros Kassio Nunes Marques e André Mendonça.
Mas o texto aprovado na Câmara e agora no Senado vai além da questão do marco e cria dispositivos que flexibilizam a exploração de recursos naturais e a realização de empreendimentos dentro de terras indígenas. Ambientalistas e o movimento indígena veem brechas para permitir garimpo, atividade agropecuária, abertura de rodovias, linhas de transmissão de energia ou instalação de hidrelétricas, além de contratos com a iniciativa privada e não indígena para empreendimentos.
O relator do projeto no Senado, Marcos Rogério (PL-RO), manteve o texto aprovado pela Câmara e rejeitou todas as sugestões de mudança. Ele defendeu que os pontos que extrapolam a tese sejam vetados pelo presidente Lula.
"Se nós fizermos qualquer modificação substancial aqui, essa matéria volta para a Câmara. E aí é uma escolha política. E nós estamos diante de um ambiente de insegurança, inquietação, intranquilidade no Brasil inteiro", justificou.
Nas últimas semanas, senadores contrários ao marco temporal reconheciam que seria difícil barrar a aprovação do texto em um momento em que o Senado tenta enfrentar discussões em curso no STF —não só sobre este tema, mas também em relação a drogas, aborto e imposto sindical.
O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), negou mal-estar com o Supremo: "Não há nenhum tipo de adversidade ou de enfrentamento com o Supremo. É apenas uma posição do Congresso, considerando que nós reputamos que temas dessa natureza devem ser deliberados no Congresso".
O julgamento do STF —concluído também nesta quarta— começou em 2021 e é um dos maiores da história da corte. Ele se estendeu por 12 sessões, sendo duas dedicadas a 38 manifestações das partes do processo, de terceiros interessados, do advogado-geral da União e do procurador-geral da República. Após decidirem que a tese é inconstitucional, os ministros fixaram a previsão de pagamento de indenização prévia a proprietários "de boa-fé" de terrenos em locais ocupados tradicionalmente por indígenas.
O clima no Congresso também contrastou com o do Supremo. Enquanto, na semana passada, indígenas acompanhavam o voto dos ministros dentro do plenário e em frente ao tribunal, apenas parlamentares, assessores e jornalistas circulavam pelo plenário do Senado nesta quarta.
Reservadamente, integrantes da base do governo afirmam que Lula deve enxugar o projeto de lei —eliminando os chamados "jabutis"— e preservar apenas o trecho que estabelece o marco temporal.
O líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), disse nesta quarta que Lula "fará o que a sua consciência disser". O senador também afirmou que "não tem dinheiro suficiente" para uma possível indenização da União a produtores rurais que adquiriram terras indígenas regularmente.
"Não tem dinheiro suficiente para pagar indenização com a crise fiscal da qual nós sonhamos em sair. Vai virar tudo precatório? Vai virar tudo o quê? Não sei. Eu só estou querendo chamar atenção que nós não estamos no caminho da solução."
A bancada ruralista ameaçava obstruir todas as votações na Câmara e no Senado enquanto o projeto de lei não fosse aprovado pelos senadores. "Se eles [ministros do Supremo] quiserem contestar essa lei, alguém vai ter que pedir, não pode ser iniciativa deles. Alguém vai ter que entrar no STF —imagino que alguém da oposição o fará— e fazer com que haja esse julgamento. Até isso acontecer, pode acontecer muita coisa", disse o presidente do grupo, deputado Pedro Lupion (PP-PR).
Especialistas ouvidos pela reportagem dizem que a lei deve ser questionada no STF em pouco tempo, e a corte deve considerar o texto inconstitucional. O mais provável, segundo o professor de direito constitucional da UFF Gustavo Sampaio, é que uma nova lei seja contestada por uma ADI (ação direta de inconstitucionalidade).
"Uma vez que o projeto de lei seja aprovado pelo Congresso Nacional e tenha a inconstitucionalidade considerada pelo STF, o Supremo poderá ser provocado em uma nova ação."
Para Vera Chemin, advogada constitucionalista e mestre em administração pública pela FVG São Paulo, a chance de isso acontecer é quase certa —mesmo que haja novidades no projeto em relação ao que foi decidido pelo Supremo.
Ela diz que o STF escolheu fixar uma tese de repercussão geral robusta, com 13 itens, para cobrir eventuais questões em aberto que possam surgir sobre o tema.
Desde 2004, recursos extraordinários, como é o caso da decisão do STF sobre o marco temporal, só são analisados pela corte caso a decisão tenha efeito para outros casos semelhantes. "Houve até uma votação para decidir se a tese seria sintética ou analítica, e ganhou a analítica, que é bastante minuciosa, passando pelas possibilidades de indenização."
Segundo Chemin, a tramitação do projeto de lei que sucedeu a decisão do STF sobre um mesmo tema reflete disfuncionalidades no Legislativo brasileiro ao longo do tempo. "Esse ciclo vicioso se prolongará indefinidamente até que a conjuntura política encontre um novo equilíbrio."
Até mesmo senadores a favor do projeto de lei reconhecem que o texto aprovado pelo Congresso vai além da tese. Um dos artigos dá aval para o contato com povos isolados para "prestar auxílio médico ou para intermediar ação estatal de utilidade pública".
Em outro ponto polêmico, a proposta abre brecha para que terras demarcadas sejam retomadas pela União, "em razão da alteração dos traços culturais da comunidade ou por outros fatores ocasionados pelo decurso do tempo".
O texto também veda a ampliação de territórios já delimitados e diz que mesmo os processos em andamento devem considerar a área ocupada em 1988.
Entidades não governamentais criticaram a aprovação do texto. Uma nota assinada por instituições como Comissão Arns e Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) afirmou que a tese do marco "é francamente incompatível com a garantia constitucional do direito à terra dos povos originários brasileiros".
Já o ISA (Instituto Socioambiental) publicou uma nota técnica argumentando que a aprovação do marco temporal "poderá inviabilizar demarcações de terras indígenas e configura uma das mais graves ameaças aos povos indígenas na atualidade".
"Sem territórios indígenas bem preservados será impossível evitar o ponto de não retorno da Floresta Amazônica, e isso terá consequências severas para toda sociedade brasileira nas próximas décadas", afirmou em posicionamento a WWF.
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