Por 9 a 2, STF derruba marco temporal das terras indígenas

Decisão de não acatar data da Constituição como referência para demarcações foi comemorada por entidades; possível indenização a produtores rurais ainda será discutida

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Brasília

Por 9 votos a 2, o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu, nesta quinta-feira (21), que é inconstitucional a tese de um marco temporal para a demarcação das terras indígenas.

É o desfecho de uma controvérsia, levada à corte ainda em 2016, em torno da interpretação de artigo da Constituição que assegura aos povos indígenas os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam. O resultado foi comemorado por lideranças indígenas e entidades e é uma derrota para ruralistas.

O julgamento começou em 2021 e foi retomado em diferentes sessões desde junho deste ano. Nesta quinta, votaram os ministros Luiz Fux, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e a presidente da corte, Rosa Weber. Eles acompanharam o relator do caso, Edson Fachin, contra a tese, assim como haviam feito Dias Toffoli, Luís Roberto Barroso, Cristiano Zanin e Alexandre de Moraes.

Kassio Nunes Marques e André Mendonça foram os únicos ministros que votaram a favor do marco.

Indígenas entram no STF para acompanhar a votação do marco temporal - Gabriela Biló/Folhapress

A tese do marco temporal estabelece que a demarcação dos territórios indígenas deve respeitar a área ocupada pelos povos até a promulgação da Constituição Federal, em outubro de 1988.

O marco é criticado por advogados especializados em direitos dos povos indígenas, pois segundo eles validaria invasões e violências cometidas contra indígenas antes da Constituição. Já ruralistas defendem que tal determinação serviria para resolver disputas por terra e dar segurança jurídica e econômica.

A decisão terá repercussão geral —ou seja, valerá para casos semelhantes nas instâncias inferiores do Judiciário. Em razão disso, na próxima quarta-feira (27), o STF ainda discutirá outros entendimentos dos ministros sobre o tema.

Como exemplo, está uma possível indenização da União a produtores rurais que adquiriram terras indígenas regularmente. Isso porque em alguns casos esses territórios foram regularizados por governos estaduais antes de qualquer reivindicação indígena.

A conclusão da corte aumenta a pressão sobre o Congresso Nacional. Em sentido contrário ao definido pelo STF, o Senado analisa um projeto de lei que fixa o marco temporal na data de promulgação da Constituição (5 de outubro de 1988).

O projeto, que foi aprovado pela Câmara no fim de maio com o apoio de ruralistas, não só estabelece o marco temporal, mas abre brecha para, entre outros pontos, o contato com indígenas isolados e a exploração energética dos territórios.

Nesta quinta, Fux afirmou, em seu voto, que as terras indígenas devem ter proteção do estado, ainda que não tenham sido demarcadas, e que essa é a interpretação mais correta da Constituição.

"O que se estabelece é que as áreas ocupadas pelos indígenas, e que guardam alguma vinculação com a ancestralidade e a tradição dos povos indígenas, ainda que não estejam demarcadas, elas têm a proteção constitucional", disse.

Ele também defendeu que o que se analisa é a posse das terras pelos indígenas, "não aquela posse imemorial".

"É aquela posse que não há mais esse estado fático, então nem eu serei despejado, nem vossa excelência terá que trabalhar na rua, nem o Supremo vai para outro lugar", disse, dirigindo-se ao ministro Gilmar Mendes.

Já Cármen afirmou que as terras mencionadas na Constituição, e que comporiam o acervo de bens reconhecidos e garantidos juridicamente aos indígenas, não podem ser, a seu ver, "desmembradas do conjunto de direitos fundamentais que lhes são constitucionalmente assegurados".

Ela também afirmou que o tema cuida "da dignidade étnica de um povo que foi dizimado e oprimido durante cinco séculos de história" e que processos chegam ao STF "atestando a continuidade da luta dos indígenas pela sua vivência".

"Todos os que cuidaram da matéria do recurso analisado reconheceram a impagável dívida que a sociedade brasileira com os povos originários porque eles tiraram as terras, as matas, contaminaram seus rios, cobiçaram e buscaram, sem cessar, e ainda buscam hoje, as riquezas das paragens que constituem para eles, não apenas uma matéria sujeita a um preço, mas o seu próprio mundo, onde podem viver, segundo as sua visão de mundo e de vida", disse.

Gilmar Mendes também afastou a tese do marco temporal em seu voto, desde que assegurada a indenização aos ocupantes de boa-fé, inclusive quanto à terra nua. Para o ministro, o conceito de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, que baliza as demarcações, deve observar objetivamente os critérios definidos na Constituição e atender a todos.

Última a votar, a presidente do STF, Rosa Weber, afirmou que a posse de terras pelos povos indígenas está relacionada com a tradição, e não com a posse imemorial. Ela explicou que os direitos desses povos sobre as terras por eles ocupadas são direitos fundamentais que não podem ser mitigados.

A ministra dos Povos Indígenas, Sonia Guajajara, que está nos Estados Unidos com a comitiva do governo federal que visita a ONU (Organização das Nações Unidas), também comemorou a maioria formada pelo Supremo.

"Seguimos agora comemorando, celebrando, sim, essa grande conquista. Foram tantos anos de muitas lutas, muitas mobilizações, muita apreensão para este resultado. Porque é um resultado que define o futuro das demarcações de terras indígenas no Brasil", disse.

Do lado de fora o STF, como nos outros dias de votação, os movimentos indígenas se reuniram para acompanhar a votação —e comemoraram, com cantos e danças, a formação da maioria contra a tese.

A presidente da Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), Joenia Wapichana, afirmou que é "dia de comemorar a vitória".

"[A maioria] enterra de vez essa tese absurda, por inconstitucionalidade, em relação ao marco temporal", afirmou. Segundo Joenia, ainda há diversas frentes de perigo contra os direitos dos povos, mas o julgamento no STF, em sua avaliação, era uma das mais importantes.

"Uma luta a cada dia, uma vitória a cada dia", completou.

Outros votos

O primeiro a votar e a refutar a tese do marco temporal foi o relator Edson Fachin, ainda em 2021. Ele disse que a teoria desconsidera a classificação dos direitos indígenas como fundamentais, ou seja, cláusulas pétreas que não podem ser suprimidas por emendas à Constituição.

Para o ministro, a proteção constitucional aos "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam" não depende da existência de um marco.

Também naquele ano, Kassio Nunes Marques reafirmou o marco temporal. Ele defendeu que a Constituição de 1988 reconheceu aos indígenas os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, mas essa proteção constitucional depende exatamente de um marco temporal.

Outro a votar a favor da tese, André Mendonça citou a "possibilidade de revolvimento de questões potencialmente relacionadas a tempos imemoriáveis". Para ele, sem o marco temporal, haveria prejuízo à sociedade, porque retiraria "qualquer perspectiva de segurança jurídica" a respeito das demarcações.

Em junho deste ano, Alexandre de Moraes votou contra a tese, mas propôs mudanças em relação à indenização que deve ser paga pela União a proprietários de terrenos em locais ocupados tradicionalmente por indígenas.

Segundo Moraes, se não houver esbulho (usurpação da posse), conflito físico ou controvérsia judicial na data da promulgação da Constituição, a União deve indenizar previamente o proprietário de terra localizada em ocupação tradicional indígena, em dinheiro ou em títulos da dívida agrária.


COMO VOTARAM OS MINISTROS DO STF SOBRE O MARCO TEMPORAL

Resultado ficou em 9 a 2 contra a tese

CONTRA

Edson Fachin

O relator argumenta que o direito dos povos indígenas às terras é anterior à criação do Estado e que, por isso, não deve ser definido por nenhum marco temporal. Lembrou que a Constituição define os direitos indígenas como fundamentais e diz que os povos têm "direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam".

Alexandre de Moraes, com tese divergente

O ministro foi contra a instituição de um marco temporal, mas abriu a possibilidade da criação de condicionantes para a demarcação de terras —como no caso da Raposa Serra do Sol—, dentre elas, a indenização de quem ficaria sem a área para que o território fosse delegado aos indígenas.

Cristiano Zanin

Indicado por Lula disse que está na hora de aprimorar a interpretação constitucional acerca do tema, "reconhecendo-se de forma explícita o acolhimento da teoria do indigenato e proibindo-se qualquer retrocesso que reduza a proteção constitucional aos povos originários".

Luís Roberto Barroso

Afirmou que extraiu do caso da Raposa Serra do Sol a visão de que não existe um marco temporal fixo e inexorável para as demarcações. Para ele, a ocupação tradicional também pode ser demonstrada pela persistência na reivindicação de permanência na área por mecanismos diversos.

Dias Toffoli

Ministro disse que proteção constitucional aos direitos de indígenas sobre as terras independe da existência de um marco temporal em 5 de outubro de 1988. "Estamos a julgar a pacificação de uma situação histórica."

Luiz Fux

Ministro afirmou que as terras indígenas têm a proteção do estado, ainda que não tenham sido demarcadas, e defendeu que o STF analisa a posse atual das terras pelos indígenas, não a "posse imemorial".

Cármen Lúcia

Ministra lembrou a "impagável dívida que a sociedade brasileira com os povos originários" e que esse grupo foi "dizimado e oprimido durante cinco séculos de história".

Gilmar Mendes

O decano afastou a tese do marco temporal em seu voto, desde que assegurada a indenização aos ocupantes de boa-fé, inclusive quanto à terra nua. Para o ministro, o conceito de terras tradicionalmente ocupadas por indígenas, que baliza as demarcações, deve observar objetivamente os critérios definidos na Constituição e atender a todos.

Rosa Weber

A presidente do STF afirmou que a posse de terras pelos povos indígenas está relacionada com a tradição, e não com a posse imemorial. Ela explicou que os direitos desses povos sobre as terras por eles ocupadas são direitos fundamentais que não podem ser mitigados.

A FAVOR

Nunes Marques

Indicado por Bolsonaro, ele divergiu do relator e afirmou, em seu voto, que o marco cria segurança jurídica para as demarcações. Ele seguiu o entendimento criado no julgamento da terra Raposa Serra do Sol, que instituiu a tese pela primeira vez no Supremo

André Mendonça

O ministro defendeu que, caso o marco temporal não exista, haveria prejuízo à sociedade, porque retiraria "qualquer perspectiva de segurança jurídica" a respeito das demarcações. "Descortina-se a possibilidade de revolvimento de questões potencialmente relacionadas a tempos imemoriáveis", declarou.

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