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Primeira médica de quilombo baiano criou cursinho pré-vestibular

Marina Barbosa foi pioneira em sua comunidade a se formar na Faculdade de Medicina da UFBA

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Salvador

"Eu era um ponto preto em uma folha branca", ouvia Marina Barbosa, 32, de um professor durante a graduação em medicina. Hoje formada pela UFBA (Universidade Federal da Bahia), ela é a primeira médica de sua comunidade quilombola Quenta Sol, no município de Tremedal (BA).

"Já nasci com esse grito no peito que clamava por alguma força de poder ajudar minha comunidade", diz.

A escolha de fazer residência médica em saúde da família veio da noção de cuidado com a comunidade, que desenvolveu ao longo dos anos no quilombo.

"O que mais matava na minha comunidade era diabete e hipertensão, que provoca o acidente vascular cerebral. Sempre que esses pacientes saíam de um quilombo para procurar os hospitais, já estavam em um estágio muito descompensado da doença e voltavam mortos. Aquilo para mim era muito doloroso, eu ficava muito revoltada."

A médica Marina da Silva Barbosa, 32, quilombola da comunidade Quenta Sol, situada na zona rural da cidade de Tremedal, no sertão da Bahia - Rafaela Araújo/Folhapress

De acordo com dados de 2020 do Ministério da Saúde, a população negra é a que mais sofre com doenças como anemia falciforme, diabetes mellitus (tipo 2) e hipertensão arterial.

A incidência dos casos e as consequentes mortes em sua comunidade motivaram Marina a buscar uma carreira na saúde. E o problema foi tema de seu trabalho de conclusão de residência, intitulado "Perspectiva de uma médica quilombola sobre acesso na atenção primária à saúde".

A aprovação no vestibular aconteceu em 2011, quando tinha 19 anos. Mas o resultado não representou tranquilidade. Marina foi para Salvador sem dinheiro, nem lugar para ficar. À época, tentou sem sucesso, durante os três primeiros meses de aula, uma vaga nas residências universitárias da Pró-Reitoria de Assistência Estudantil da UFBA, criadas em 2006.

Sem o amparo da universidade e com dificuldades financeiras, ficou hospedada em um local improvisado e se alimentava mal, até receber o apoio de uma professora.

Em meio às dificuldades de acomodação e adaptação, Marina adoeceu. Sentiu fortes dores e desmaiou durante uma prova de biologia, e descobriu que tinha arterite de Takayasu, uma doença autoimune rara que causa obstrução das aortas, gerando dor torácica e fadiga, entre outros sintomas.

Ao longo de seis meses, a então estudante investigou a causa da doença. Ao mesmo tempo, fazia acompanhamento e buscava um diagnóstico no Hospital das Clínicas, em Salvador.

Com a doença e as demais dificuldades, precisou reduzir o número de matérias por semestre, mas nunca trancou o curso. Ela teria formado em 2019, mas a pandemia retardou ainda mais a conclusão do curso, e Marina se graduou apenas em 2021.

A Faculdade de Medicina da UFBA elegeu seu primeiro diretor negro em 2023, após 215 anos de existência da instituição. O médico professor Antônio Alberto Lopes tomou posse no dia 14 de agosto deste ano.

Os preconceitos vividos durante a passagem pela universidade foram diversos. Dentre eles, Marina relembra a discriminação que sofreu por falar com traços da linguagem de sua comunidade.

"São palavras que são do meu povo. Independentemente de estudar ou não, vira e mexe você solta os vícios linguísticos", diz.

A violência sofrida pela população quilombola ceifou a vida da líder religiosa Bernadete Pacífico, a Mãe Bernadete, no último dia 17. "A morte de Mãe Bernadete foi e está sendo causa de muita dor para mim".

Desde 2013, a Conaq (Coordenação Nacional de Quilombos) registrou 30 execuções de quilombolas. Os estados que mais somam assassinatos ao grupo são Bahia (11), Maranhão (8) e Pará (4).

"Me tornei uma pessoa conhecida pelos outros quilombos, e Mãe Bernadete sempre me chamou para dar palestra lá na região metropolitana, onde ela atuava. Ela sempre me convidava e dizia que gostaria de me conhecer. Não deu tempo de fazer essa visita e dar esse abraço", lamenta.

"Mãe Bernadete de certa forma colaborou, enquanto liderança quilombola, para que a gente tivesse acesso às cotas na universidade."

NA COMUNIDADE

"Foi um momento ímpar, muito bom e de muito êxtase", lembra Carlos Manoel Rocha, 39, líder de Quenta Sol, sobre o momento da aprovação de Marina no curso de medicina. A trajetória da jovem nos estudos foi acompanhada pela comunidade, onde ela cursou os ensinos fundamental e médio.

Junto a colegas e professores, ela fundou um cursinho preparatório para vestibular aos 17 anos.

"A gente um dia sentou e pensou em fazer um grupo de estudo. Ampliou, pedimos ajuda de professores voluntários, lá em Vitória da Conquista, já não era em Tremedal. E desse grupinho de estudos nasceu o pré-vestibular quilombola que existe até hoje em Vitória da Conquista", conta a médica.

A primeira aprovação impulsionada pelo cursinho foi para o curso de Engenharia na cidade baiana de Feira de Santana.

Para o líder Carlos Manoel, os conhecimentos adquiridos no quilombo são fundamentais para a carreira, assim como a devolução desse aprendizado para a comunidade.

"Ela está sempre no nosso quilombo. A última presença que tivemos dela foi para falar da doença do carrapato. Ela se convidou para falar a respeito."

"Quando eu me formei, pensei: preciso dar um retorno para a minha comunidade", lembra Marina. "Lá eles se reconhecem em mim, e eu me reconheço neles."

No entanto, para voltar a serviço da saúde para Quenta Sol, Marina entendeu que seria necessário uma estrutura maior, o que ainda não foi possível fazer.

A médica Marina Barbosa em sua comunidade, o quilombo Quenta Sol, em Tremedal (BA), em palestra sobre a doença do carrapato - Quilombo Quenta Sol

Atualmente, Marina alterna a rotina entre os trabalhos na UPA (Unidade de Pronto Atendimento) do bairro de São Marcos, em Salvador, na Fundação Estatal Saúde da Família (FESF-SUS) e em um posto de saúde da comunidade rural de Altamira, no município baiano Conde. A comunidade estava havia um ano sem médicos.

Por enquanto, a médica retorna à sua comunidade para palestras e orientações gerais para os conterrâneos.

"Ela sempre vem fazer sua contribuição porque tudo que ela conseguiu foi através de uma carta quilombola, que proporcionou a ela hoje ser uma médica formada pela UFBA. Ela está fazendo a sua contrapartida, passando conhecimento para o pessoal do quilombo", diz Carlos Manoel. "Quando você é líder quilombola ou mora dentro de um quilombo e conseguiu algo que o quilombo proporcionou, acho que o ideal é você retribuir."

O projeto Quilombos do Brasil é uma parceria com a Fundação Ford

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