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Catharina recorreu ao príncipe para se livrar da acusação de assassinato do cunhado

Moradora do Mato Grosso, ela foi condenada em 1800 a pena de degredo para Benguela, na África

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Nauk Maria de Jesus

Professora associada no curso de graduação e pós-graduação em história da Universidade Federal da Grande Dourados.

Dourados (MS)

24 de maio de 1800, Vila Real do Senhor Bom Jesus do Cuiabá, capitania de Mato Grosso. Uma forca foi erguida na vila para execução da pena capital de quatro homens condenados pela Justiça, dois deles acusados de terem assassinado o cirurgião Francisco de Paula de Azevedo. Além do enforcamento, suas cabeças decapitadas seriam enviadas aos lugares em que cometeram os delitos.

Tais punições, previstas nas Ordenações do Reino, serviam como controle social, instigadoras de medo e exemplo aos moradores que assistiam às execuções públicas.

Outra acusada foi Catharina Maria Fortes, natural da vila, onde morava, e cunhada da vítima. Ela foi presa na cadeia da Câmara para averiguação, julgada e condenada ao "degredo para toda a vida para Benguela".

Ilustração de Mariana Waechter publicada na Folha de S.Paulo em 7 de outubro de 2023 mostra uma mulher branca, da cintura para cima. Ela quase toda a parte esquerda da cena. Usa um vestido cinza com detalhes em losangos azuis. As mangas são compridas e a cola e os punhos têm um babado branco. Os braços aparecem cruzados, ela usa um colar com um pequeno camafeu e brincos em formato de gotas. Os cabelos, divididos ao meio, parecem curtos ou estão presos. Tem os olhos pequenos e escuros, as sobrancelhas cerradas e bem arqueadas, um nariz delicado e lábios grossos. Está olhando em direção ao leitor, com uma expressão séria. Ao fundo, o cenário trás árvores e casas de fazenda.
Condenada ao degredo pelo assassinato do cunhado, Catharina Maria Fortes, natural da capitania de Mato Grosso, pediu o perdão do então príncipe regente dom João 6º no início do século 19 - Mariana Waechter/Folhapress

Essa punição caracterizava-se pela expulsão do condenado do local de sua morada para diferentes áreas do império português por vários anos ou por toda a vida. Há sinais de que, por volta de 1802, ela já tinha seguido para Lisboa, onde ficou presa na cadeia do castelo de São Jorge. De lá deveria cruzar o Atlântico para cumprir a sua pena.

Mas Catharina não se rendeu ao seu destino e, por volta de 1803, enviou um requerimento ao príncipe regente dom João 6º, solicitando perdão da pena de degredo para Benguela, cidade que hoje pertence a Angola, ou comutação para Castro Marim, no Algarve, na fronteira com a Espanha.

Recorrer ao rei era uma das estratégias utilizadas pelas condenadas, pois cabia a ele perdoar os delitos. Se para os governantes, entre outros fins, o perdão poderia ser um ato misericordioso e um meio de fortalecer o poder, para as sentenciadas o pedido representava o acesso aos recursos jurídicos na tentativa de se livrar de suas culpas ou diminuir as suas sentenças.

pintura mostra dom joão em pé, em frente ao trono, em roupa suntuosa
Dom João 6º, rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves de 1816 a 1822 e de Portugal e Algarves até 1826, em pintura de Jean-Baptiste Debret (1817) - Museu Nacional de Belas Artes

Um dos argumentos apresentados pelo representante de Catharina era que o rei já havia concedido muitos perdões na Sexta-Feira Santa. Outros foram: que duas pessoas tinham sido culpadas pelo crime; que a acusada era uma "miserável donzela", filha de importante figura na vila que tinha feito muitos serviços à Coroa e pago avultados tributos; e que o rei não tinha intenção de que nos degredos ultramarinos fossem mulheres já desterradas, como Catharina, que saiu de sua pátria em direção ao reino.

Segundo as testemunhas inquiridas em Lisboa, Catharina era pessoa de qualidade, temente às leis divinas e tratada à lei da nobreza. Uma declarou que ela tinha sido presa e sentenciada por "indícios", assim como escrito no seu requerimento, e outra que era "mal afeita" com a vítima.

Por sua vez, descreveram o cunhado como pessoa de mal viver e propenso a fazer crimes, pois na vila havia deflorado ou roubado "uma mulata" de um morador. Por temer os seus inimigos, ele se recolhia em casa antes do anoitecer.

Em 1797, a irmã de Catharina, dona Maria Bernarda Poupino, "mulher branca, de boa nota", grávida, abriu processo no juízo eclesiástico por maus tratos contra Francisco, seu marido, e manifestou o desejo de se divorciar após poucos meses de casados.

Os tribunais eclesiásticos eram responsáveis pelos matrimônios, suas anulações e divórcios. A divisão dos bens dos cônjuges competia aos tribunais civis.

Maria Bernarda denunciou que o marido a queria matar com veneno, que tinha prometido 50 missas para as almas caso ela morresse no parto, que tinha enlouquecido no Rio de Janeiro, que bebia muito e perdia os sentidos, que proferia palavras descomedidas e agia de modo pouco regular.

Ao ter seu pedido indeferido pelo vigário, ela se negou a retornar para a casa do cônjuge. Preferiu ser levada para a cadeia da vila. E foi! Recorreu ao governador e capitão-general da capitania para que fosse solta. Foi atendida, mas morreu no parto.

O seu marido, então, prosseguiu como herdeiro no inventário de seu sogro, aberto em 1797. Francisco e a cunhada Catharina se indispuseram, mas ele não participou da partilha dos bens, pois foi morto em 1799.

Briga por herança? Vingança pelos maus tratos sofridos pela irmã durante o casamento? Não sabemos o que levou Catharina ao assassinato do cunhado, se teve mesmo participação no ato, se conseguiu o perdão solicitado ou a comutação da pena.

Sabemos que, inocente ou culpada, pertencia a uma das principais famílias da vila, que ela e sua irmã estiveram na cadeia e que, sem temer a exposição pública em uma sociedade escravista e hierarquizada, como outras mulheres na América portuguesa, elas acionaram a Justiça a partir dos instrumentos legais que lhes eram acessíveis, como os pedidos de perdão e denúncias de sevícias. Outra irmã também recorreu ao príncipe, mas essa é outra história.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes e, em geral, pouco conhecidas ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje.

Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e têm publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

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