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Escravizada, Felisbina foi presa por querer controlar seu próprio corpo

Ela viveu na segunda metade do século 19 em Nossa Senhora de Desterro, atual Florianópolis

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Joana Maria Pedro

Professora titular em história social do departamento de história da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Florianópolis

Felisbina foi uma mulher de ascendência africana, nascida no Brasil, escravizada, que estava presa em 1872 por infanticídio na cadeia da cidade de Nossa Senhora de Desterro (atual Florianópolis), capital da província de Santa Catarina. Sobre ela, o pouco que se pode saber é obtido por meio dos registros policiais.

A partir da segunda metade dos anos 1860, com a Guerra do Paraguai (1864-1970), o fornecimento de farinha de mandioca e peixe seco de Santa Catarina trouxe enriquecimento para algumas famílias de comerciantes da cidade.

Uma das formas usadas por esse setor em ascensão para se diferenciar dos grupos mais pobres foi a busca por um controle maior de comportamentos, levando à criminalização de vários hábitos populares. Foi dessa forma que várias mulheres e homens pobres tiveram seus nomes registrados nos livros de polícia e passaram uma noite na cadeia.

Ilustração de Mariana Waechter publicada na Folha de S.Paulo em 23 de setembro de 2023 mostra uma mulher na prisão. A cela é desenhada em lápis preto e colorizada em bege. A parece é composta de tijolos grandes e retangulares. Do lado direito, uma porta com grades verticais e uma fechadura de metal. Felisbina aparece sentada em um banco de madeira, suspenso por correntes presas à parede. Ela é negra, está usando um vestido longo, com mangas compridas e sem muitos detalhes. Os braços estão ligeiramente cruzados e apoiados sobre as pernas. Na mão esquerda, segura um lenço verde. Os cabelos estão presos em um coque no alto da parte de trás da cabeça. Ela tem uma expressão série
Mulher escravizada na cidade de Nossa Senhora de Desterro, atual Florianópolis, Felisbina estava presa em 1872 por causa de um aborto, à época considerado crime de infanticídio - Mariana Waechter/Folhapress

Além de Felisbina, havia outras mulheres na cadeia pública da cidade, um edifício cujas celas estavam na parte de baixo. Na parte de cima, ficava a Casa da Câmara, onde hoje é um museu. Essas mulheres eram presas por embriaguez, por brigas ou por fazer gestos obscenos. Muitas eram lavadeiras, cozinheiras, comerciantes ou prostitutas.

Não temos o processo de condenação de Felisbina por infanticídio, mas podemos fazer conjecturas. A historiografia tem falado de muitas escravizadas que abortavam para não gerar novos escravos para o proprietário, por terem sido estupradas ou ainda pelo peso que uma nova gravidez representava em suas vidas de intenso trabalho.

É importante lembrar que práticas de aborto com o uso de chás, agulhas e medicamentos eram comuns entre mulheres das mais diferentes culturas, inclusive das escravizadas. Gravidezes indesejadas eram interrompidas.

Apesar disso, o aborto de fetos um pouco maiores era considerado pela Justiça como infanticídio. Como em meados do século 19, não era possível diferenciar um aborto de um infanticídio (a identificação mais precisa só se tornou possível em Desterro no final do século 19), muitas mulheres acabavam presas.

O aborto ou infanticídio entre escravizadas ganhou mais importância com o fim do tráfico de escravos, ou seja, depois de 1850. O trânsito interprovincial de escravizados passou a ser lucrativo e, por isso, os filhos das escravas tornaram-se mais valiosos. Dessa forma, mulheres escravizadas também tiveram suas práticas costumeiras de aborto e infanticídio criminalizadas.

Foi possivelmente nesse contexto que Felisbina acabou presa por infanticídio. Ficamos sabendo da existência dela quando o chefe de polícia precisou chamar um médico porque ela passara mal na cela. Foi então constatado que estava grávida e que tomara um chá para abortar.

Mas como Felisbina poderia ficar grávida estando presa na cadeia pública? Um inquérito foi aberto. O depoimento de Felisbina foi assinado com um X. Ela não era alfabetizada, como a maioria das pessoas pobres e, especialmente, das mulheres escravizadas. Tudo indica que foi forjado para livrar todo o aparato policial da capital da responsabilidade.

O inquérito diz que Felisbina engravidara de um soldado chamado Furriel Cardoso, que montara guarda na cadeia e que já não se encontrava mais na província. Dizia ainda que as relações sexuais se fizeram através das grades da janela da cadeia e, assim, "com a ajuda deste pela fresta da grade e ela pela parte de dentro, se comunicavam, isto por duas ou três vezes, resultando dessas entrevistas noturnas, ficar grávida".

Convém lembrar que para ter relações sexuais pelas grades da janela da cadeia era preciso muita agilidade, pois as paredes eram bastante largas, feitas de pedra, coladas com óleo de baleia. O subsolo onde ficavam as celas exigiria que Felisbina e o tal soldado tivessem habilidades corporais bastante incomuns.

Enfim, Felisbina não foi engravidada desta maneira, mas foi assim que foi registrado no inquérito.

E o que sabemos sobre ela depois disso? Teve seu filho na cadeia em janeiro de 1873, e Severina Roza de Jesus recebeu 10$000 (10.000 réis) para fazer o parto.

Em maio de 1874, Felisbina tentou fugir, limando as grades da janela da prisão. Em 1892, foi posta em liberdade, tendo sido "perdoada do resto da pena pelo cidadão Presidente do Estado". Era tempo de República. A partir daí, nem sequer nos registros policiais é possível encontrá-la. Talvez ela tenha podido ter algum controle sobre seu próprio corpo longe das malhas da Justiça.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes e, em geral, pouco conhecidas ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e têm publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

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