Descrição de chapéu Mátria Brasil LGBTQIA+

Para sair da prisão, travesti negra Rosalina teve que se vestir como homem no século 19

Detenção ocorrida no Rio de Janeiro antecipou debate que só ganharia forma muitas décadas depois

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Megg Rayara Gomes de Oliveira

Professora travesti adjunta do programa de pós-graduação em educação (PPGE) da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

Curitiba

As narrativas a respeito da presença de travestis negras e brancas no Brasil até a primeira metade do século 20 são bastante escassas e, quando identificadas, reforçam visões estereotipadas e reducionistas, procurando associá-las à prostituição, à criminalidade, à miséria e às infecções sexualmente transmissíveis, justificando a vigilância constante da polícia.

Foi justamente a polícia que produziu os primeiros registros a respeito das travestilidades no Brasil, especialmente negras, e posteriormente divulgados, de maneira tendenciosa, pela imprensa.

Tanto nos registros policiais quanto nas reportagens publicadas a partir da segunda metade do século 19, o termo mais utilizado para se referir às travestis era "homem-mulher", dificultando e até impedindo que elas exercitassem o direito à autodeterminação e construíssem narrativas de si mesmas.

E foi assim, como criminosa, que a jovem travesti negra Rosalina foi descrita pelo jornal Diário do Rio de Janeiro em 1875, conforme artigo pioneiro do antropólogo Jocélio Santos.

Sobre um fundo branco, ilustração de Veridiana Scarpelli mostra mulher negra. Ela aparece do peito para cima, ocupando todo o centro da cena. É uma pessoa esguia, com pescoço comprido. Os braços aparecem como se estivessem apoiados na borda do quadro. Usa uma roupa azul, de mangas curtas e renda branca nas extremidades. Cobrindo quase toda a parte de cima está um xale branco, ligeiramente amarelado, com pequenos detalhes estampados em verde. No pescoço, um colar dourado dá duas voltas, bem rente à pele. Os cabelos estão presos por uma espécie de tiara, e pequenas mexas encaracoladas descem pelas laterais do rosto. Usa brincos redondos e dourados nas duas orelhas. A expressão é de serenidade e os olhar está direcionado para o leitor.
Denunciada por sua travestilidade, Rosalina foi obrigada a se vestir como homem para deixar a prisão; ela viveu no Rio de Janeiro no século 19 - Veridiana Scarpelli/Folhapress

Com aproximadamente 22 anos, Rosalina fora presa na casa de uma família na rua Uruguaiana, esquina com a General Câmara, na Freguesia do Engenho Velho, onde trabalhara como mucama por quatro dias seguidos. Durante esse período, fora reconhecida e tratada como Rosalina, tendo seu nome e seu gênero respeitados.

Para conseguir o emprego, a jovem travesti recorrera a uma agência portuguesa que "alugava" trabalhadoras/res que executavam serviços variados. Com formas e voz femininas, de acordo com o jornal, Rosalina correspondia aos padrões de mulheridades da época, estando apta, portanto, a exercer a função de mucama.

Ainda que a reportagem não traga informações a respeito de seu desempenho profissional, é possível deduzir que estivesse atendendo às expectativas projetadas sobre ela, uma vez que a única queixa a seu respeito, e que resultara na sua prisão, se referia à sua identidade de gênero travesti.

Depois de ser vista nua pelo filho do casal que a empregara e ser denunciada por ele, Rosalina foi entregue às autoridades policiais pelo dono da casa.

Tentando decifrá-la, a reportagem informava que "movia-se desembaraçadamente em trajes de mulher" e usava uma pequena almofada de algodão para simular os seios. Os cabelos também estavam penteados de acordo com os padrões de feminilidade, envolvidos por uma rede muito fina e presos por um pente conhecido por travessa.

Ainda de acordo com a reportagem, a jovem travesti fora interrogada por dois delegados, que tentavam fazer com que confessasse que era uma farsante e assim justificar sua prisão, ainda que o Código Criminal do Império do Brasil não tivesse nenhum artigo que previsse punição para pessoas como Rosalina, que desafiavam a cisgeneridade normativa: pessoas que se identificam com o gênero atribuído no nascimento.

Mesmo em situação de desvantagem, dado o contexto da situação, ela afirmou em seu primeiro depoimento pertencer ao sexo feminino e, desde a "tenra idade" –ainda na infância, presumo eu– apresentava-se em sociedade como Rosalina e que trabalhava havia alguns anos como mucama, além de ter exercido a função de cozinheira para "alguns trabalhadores de estrada de ferro" na cidade de Barra do Piraí (RJ).

Pressionada pelo segundo delegado, Rosalina foi obrigada a reconhecer sua anatomia biológica como sendo do sexo masculino, ainda que suas formas, seu cabelo, sua voz, seu gestual, sua indumentária questionassem tal informação. Acredito que a decisão dela em ceder à pressão do delegado tenha sido estratégica para conseguir sua liberação.

Embora não afirme explicitamente, a reportagem sugere que a punição imputada a ela foi a de sair da delegacia em trajes masculinos, se mostrando "acanhada e trôpega no andar", bastante desconfortável com a situação.

O esforço empreendido pela cisgeneridade branca heterossexual masculina, representada pelo homem que a denunciou, pela polícia que a prendeu e pela imprensa que tentou decifrá-la, reduzindo-a à anatomia biológica para considerá-la uma fraude, logo uma criminosa, não surtiu os efeitos esperados, uma vez que as narrativas sobre ela são marcadas por inúmeras contradições.

Ora Rosalina era tratada no masculino, ora no feminino, evidenciando, a um só tempo, o controle sobre sua identidade longe de ser concretizado e a histórica violência contra travestis no Brasil.

Rosalina, então, antecipava um debate que ganharia forma apenas na segunda metade do século 20, informando, com seu corpo, que as pessoas não nascem homens ou mulheres, mas tornam-se, independentemente do órgão genital.

Projeto retrata mulheres ao longo da história do Brasil

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes e, em geral, pouco conhecidas ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e têm publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.

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