Caos pós-temporal expõe atraso de SP para lidar com eventos climáticos

Plano climático da gestão Bruno Covas tem ficado de lado em revisões de leis pela prefeitura

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São Paulo

O caos vivenciado em São Paulo desde a chuva da última sexta-feira (3), com duas mortes na capital paulistasete em todo o estado—, dezenas de árvores caídas, 1 milhão de domicílios sem energia por quase 70 horas e um rastro de destruição expõem apenas algumas das muitas falhas cometidas por gestores públicos frente aos já esperados eventos extremos provocados pelo aquecimento global.

Nesta segunda-feira (6), cerca de 500 mil unidades consumidoras, entre residências e comércios, por exemplo, seguem sem energia elétrica, segundo a Enel.

Ações poderiam ter amenizado o impacto dos ventos de mais de 100 km/h de sexta na infraestrutura urbana, como o manejo adequado de árvores e o enterramento dos cabos de energia e comunicação. A ausência ou ineficiência de tais medidas reflete, porém, um problema sistêmico: a falta de adequação das principais leis urbanísticas ao contexto da emergência climática, segundo especialistas ouvidos pela Folha.

Pedestre observa carro esmagado por árvore que caiu na rua Bresser, na zona leste da capital paulista
Pedestre observa carro esmagado por árvore que caiu na rua Bresser, na zona leste da capital paulista - Ronny Santos/Folhapress

Existem três camadas legais que estruturam o desenvolvimento da cidade de São Paulo.

O Plano Diretor é a primeira delas, pois é o guia do chamado marco regulatório paulistano. Ele define a estratégia de crescimento da cidade por um período de 15 anos. É nesta lei que a prefeitura decide se pode estimular o mercado a construir mais moradias ou prédios comerciais em uma região da cidade.

O segundo nível é a Lei de Zoneamento, responsável por determinar o que pode ou não ser construído em cada quadra do município. Finalmente, está o Código de Obras e Edificações, para orientar como cada prédio pode contribuir com o bem-estar dos moradores da cidade.

A ausência de medidas que efetivamente ajustem a cidade à crise do clima, nos três níveis do marco regulatório, indicam que questão não tem sido priorizada, segundo a engenheira-civil Denise Duarte, que é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP e especialista em adaptação das cidades à mudança climática.

Pior do que isso, a revisão do Plano Diretor tratou apenas superficialmente do problema e a atual discussão da Lei de Zoneamento segue na mesma direção. "Isso definitivamente não foi colocado em pauta", diz Duarte. "Tanto foi ignorado que chegou-se discutir a liberação do sombreamento da estação meteorológica", comentou, destacando que uma das versões da proposta liberava a construção de prédios altos no entorno do Mirante de Santana, o que poderia inutilizar a principal estação de observação do clima da capital.

Ainda na gestão do prefeito Bruno Covas (PSDB), a prefeitura estabeleceu um Plano de Ação Climática, o PanClimaSP. O programa traça um planejamento de mitigação e adaptação a mudanças climáticas, para o período entre 2020 e 2050, pactuado com um grupo de 40 cidades ao redor do mundo.

Direções apontadas no PanClimaSP, como o aprimoramento do sistema de drenagem com soluções baseadas na natureza (mais áreas permeáveis, por exemplo), precisariam ser alinhadas com a revisão do Plano Diretor, o que não aconteceu, segundo a especialista.

Considerando que a privatização do sistema de distribuição elétrica se deu no âmbito federal, há pouco o que a prefeitura possa fazer quanto ao fornecimento. Mas ações mitigatórias para eventos climáticos dentro da legislação amenizariam transtornos provocados por cortes de energia, segundo a advogada especialista em regulação urbana, Mariana Chiesa. "Fala-se muito do que não é de responsabilidade da cidade, mas há muitas outras coisas a serem feitas", diz.

O aproveitamento das superfícies de prédios para a geração de energia solar local, por exemplo, poderia ter sido amplamente estimulado pelo Plano Diretor para as novas construções. Afirmação com a qual Duarte concorda.

Elas dizem que a geração local poderia abastecer elevadores e até algumas poucas tomadas por andar ou apartamento, sem a necessidade de geradores de energia movidos a diesel, que são poluentes.

Eficiência energética é um dos pontos a serem discutidos no Código de Obras e Edificações, que deverá ser revisto ao final da discussão do zoneamento. Hoje, embora existam normas que tratem do tema, não há lei que obrigue construtores a diminuírem a dependência do ar-condicionado, segundo Duarte.

"A maior parte dos prédios comerciais são envidraçados e com janelas lacradas e precisariam ser evacuados se o ar-condicionado parasse de funcionar", afirma Duarte. "Seria terrível se essa tempestade tivesse acontecido em um dia útil, em vez do feriado."

O enterramento dos fios, porém, deve ser mantido na pauta da gestão pública e decisões impopulares, como a cobrança desse serviço também, afirma o economista Ciro Biderman, diretor FGV Cidades.

Com custo que pode passar dos R$ 10 milhões por quilômetro de cabeamento que sai dos postes e vai para debaixo das calçadas, a despesa teria de ser repassado para a conta de luz, diz Biderman. "A cobrança progressiva seria mais justa, e os maiores consumidores pagariam a maior parte."

Renato Cymbalista, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP, reforça que há falhas no planejamento, mas destaca que a resposta aos eventos precisa melhorar. "Quando eventos extremos ocorrem, há ferramentas, como a Defesa Civil, mas elas precisam ser fortalecidas."

Em resposta às críticas, a gestão do prefeito Ricardo Nunes (MDB) diz que a Secretaria Executiva de Mudanças Climáticas retomou em outubro as reuniões do PlanClimaSP.

A administração afirma que isso representa um passo inicial para planejar o monitoramento do PlanClimaSP e execução do relatório 2024, essencial para o engajamento do município no cumprimento de suas metas de mitigação e adaptação frente às mudanças climáticas.

Entre outras medidas mencionadas, a prefeitura informou que está em estudo a aquisição de energia solar do mercado privado e a implantação de uma fazenda solar na cidade.

Sobre a revisão do Plano Diretor, a gestão Nunes comentou que as diretrizes e objetivos da política ambiental resumem-se aos princípios norteadores do cuidado com o meio ambiente e mitigação dos efeitos das mudanças climáticas.

Disse, ainda, que a revisão está mais sintonizada com as questões de combate às mudanças climáticas, com a incorporação no texto às diretrizes e princípios do Pacto Global das Nações Unidas e seus objetivos de desenvolvimento sustentável.

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