Descrição de chapéu Obituário José Bortoluci (1943 - 2023)

Mortes: Caminhoneiro por 50 anos, deixa histórias de amor pelas pequenas coisas

A cada pequena vitória, José Bortoluci reconhecia seu quase inexplicável desejo de viver

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José Henrique Bortoluci
Jaú

Meu pai —José Bortoluci, conhecido por todos como Didi— costumava dizer que não pensava muito na vida. Em vez disso, preferia viver.

Nos últimos três anos, se agarrou ferozmente às suas pequenas alegrias e realizações cotidianas, enquanto enfrentava um bombardeio de males graves que o afligiam: dois diagnósticos de câncer de intestino, um coração frágil, um rim debilitado, uma anemia crônica, um aneurisma abdominal, males da próstata.

A cada pequena vitória —quando ele conseguia, apesar de tudo, negociar um pouco com a morte, teimoso que era—, ele reconhecia seu quase inexplicável desejo de viver.

homem idoso com camisa polo clara mexe cozido em panela grande com colher de pau
José Bortoluci (1943 - 2023) - João Paulo Bortoluci

"Aqui é aroeira, pica-pau!", ele dizia, comparando-se à árvore de madeira resistente.

Didi foi caminhoneiro por 50 anos, de 1965 a 2015. Esse foi um período de pioneirismo nas estradas. Ele é parte da geração de motoristas que viveu a expansão em ritmo frenético do sistema viário brasileiro, sobretudo durante os anos de chumbo da ditadura militar.

Como trabalhador, esteve perto da história sendo construída e contribuiu muito com isso, mas sem ocupar os espaços de poder que definiam sua lógica violenta.

Contei parte dessas histórias em "O que é meu", livro publicado neste ano pela Fósforo, baseado em seus relatos orais. Nele, tentei costurar sua história de vida com a formação do território e da sociedade brasileira nas últimas oito décadas.

Nos dias finais de sua vida, eu estava em Paraty, na Flip, no que seria uma inesperada homenagem pública final ao velho motorista e contador de histórias. Nós começávamos a preparar sua festa de 80 anos, que seria comemorada dia 22 de dezembro. Seria um grande churrasco —uma arte que ele dominava como poucos.

Didi oscilava entre a doçura eufórica e a irritação. Muitos diziam que tinha cara de bravo. Ele adorava festas, encontros, passeios. Tinha uma enorme curiosidade pelas coisas do mundo. Ele cobria minha mãe de galanteios e agradecia nas orações de todas as manhãs pela esposa e pelos filhos que tinha.

Quando eu ou meu irmão João Paulo os visitávamos em Jaú (no interior de São Paulo), onde Didi nasceu e viveu até o fim, ele transbordava ansiedade, preocupado com o cardápio que ele prepararia para nós e para Dirce, sua esposa por 40 anos.

Ele era um mestre do asfalto, mas a cozinha era seu segundo palco. E Didi era cheio de caprichos: até seus últimos dias, apesar dos obstáculos de sua saúde, ele cruzava a cidade para encontrar o produto exato que buscava para poder fazer seus pratos.

Poucas horas antes de chegar muito debilitado ao hospital no que seria sua última internação, ele brindou minha mãe com sua obra final: uma deliciosa polenta com molho à bolonhesa. Ela aplaudiu, antes que se fechassem as cortinas pela última vez.

Morreu no domingo, dia 26. Depois de seu enterro, num fim de tarde fresca e ensolarada, caminhávamos eu, meu irmão e minha mãe até o carro para voltar para casa. Olhando para trás, percebi que três velhos caminhoneiros —poucos dos que ainda restaram de seus tempos de viagem— seguiam próximos ao túmulo, enquanto todos os outros amigos e familiares partíamos.

Entre risos e lágrimas, eles contavam histórias: "Ah, lembra o que o Didi aprontou lá em Rondônia em 1970?". As histórias e o amor, eles permanecem.

coluna.obituario@grupofolha.com.br

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