Mulher trans comanda atendimento a clientes em caldeirão multicultural de SP

Marcela Bosa, que atua com imigrantes, comerciantes e turistas religiosos, já enfrentou preconceito de clientes e situação que acabou na delegacia

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São Paulo

Um cliente entrou proferindo falas machistas, racistas e homofóbicas contra funcionários de uma agência bancária no Brás, no centro de São Paulo, no ano passado. A gerente-geral Marcela Bosa, 38, mulher trans, logo tentou interferir na situação e também foi agredida verbalmente. Para proteger as pessoas presentes, e denunciar um crime, ela logo chamou a polícia e todos foram parar na delegacia.

"Ele dizia coisas como 'mulher não pode trabalhar', 'preto tem que morrer' e 'na minha terra viado se mata na bala'. Fiz valer o meu direito. Chamei a polícia, ele também xingou um policial, que era negro. Foi preso, mas só por um dia."

Marcela, que trabalha em um maiores bancos públicos do país desde 2006, é especialista em investimento e atualmente atua no atendimento geral de pessoas física e jurídica. Um terço de seus clientes é de imigrantes. Ela também recebe correntistas de outros estados que fazem comércio no Brás ou até turismo religioso.

Marcela é uma mulher branca de cabelos loiros e lisos e olhos escuros. Na imagem, ela está sentada no sofá e é vista de cima. Ela veste uma blusa branca e calça escura.
Marcela Bosa diz que já enfrentou situações embaraçosas e foi vítima de preconceito por ser uma mulher trans; ela atua como gerente de uma agência do Banco do Brasil no Brás, em São Paulo - Karime Xavier/Folhapress

A região onde Marcela atua é um verdadeiro caldeirão multicultural de São Paulo. Ali estão misturados comerciantes de lojas disputadas da cidade, a Feirinha da Madrugada, vendedores ambulantes e fiéis de igrejas como Universal do Reino de Deus, Congregação Cristão no Brasil, ADBrás Madureira, Apostólica Plenitude do Trono de Deus e Mundial do Poder de Deus.

Um terço dos clientes de Marcela é de imigrantes. Ela também recebe correntistas de outros estados que fazem comércio no Brás.

Mas mesmo com tanta diversidade ao redor, ela já enfrentou situações embaraçosas, como clientes trocando seu pronome e teve que driblar comentários inadequados por parte de colegas de trabalho.

"Estamos tão acostumadas com certos tipos de agressões, que aprendemos a lidar com essa situação. Enfrento esses desafios, luto por meus direitos e pelo respeito no ambiente de trabalho."

Marcela destacou a importância de sua equipe e de seu papel como líder em sua agência, afirmando que aprendeu muito com seus funcionários e que está comprometida em criar um ambiente inclusivo e respeitoso.

Mas ela quer ir bem além. "Almejo ser presidente do banco." Mas foi apenas em 2017, quando já tinha 11 anos de casa e havia terminando um casamento de oito anos, que Marcela decidiu passar pelo processo de afirmação de gênero.

Embora tenha enfrentado desafios em sua jornada como mulher trans no mundo financeiro, Marcela diz que teve apoio institucional e que mudanças na legislação, como a lei que equipara ofensas contra pessoas LGBTQIAPN+ a crime de injúria racial, permitiram que ela enfrentasse essas questões de maneira positiva.

Tanto que ela escreveu o livro, "Ma – Eu. Mulher. Trans." (ed. Apris, 2023), relatando sua trajetória, com algumas pitadas de humor, para ajudar a combater o preconceito. Para ela, a obra tem como objetivo normalizar as experiências de pessoas trans e desafiar estereótipos.

"Eu me considero uma militante e compartilho a minha história para ajudar a quebrar barreiras e promover a aceitação da diversidade. Espero servir de inspiração para outras pessoas."

Mas a experiência de revelar à família quem ela era de verdade não foi nada positiva. Seu pai cortou relações com ela e ainda fez a família inteira, inclusive a mãe dela e irmãs, romper também.

"A única que continuou falando comigo foi uma prima. Virei "Aquele-Que-Não-Se-Nomeia", uma referência ao personagem Lord Voldemort, da saga Harry Potter, vilão tão temido que poucos ousavam pronunciar seu nome.

"O preconceito e a falta de compreensão afetaram muito minhas relações familiares."

COMISSÃO TENTA REVER CONDUTAS POR MAIS DIVERSIDADE

Em março do ano passado, o banco onde Marcela Bosa atua decidiu criar uma comissão de diversidade, para revisar condutas e sugerir abordagens novas e mais atualizadas.

Dentre os objetivos, estavam ações e políticas para ajudar a melhorar o ambiente de trabalho, tendo que considerar a inclusão de pessoas negras, neurodivergentes, autistas, pessoas com deficiência (PCD), população LGBTQIAP+ e mulheres.

Theo Linero, 35, assessor de captação e investimentos do mesmo banco, é homem trans que no ano passado teve a oportunidade de fazer parte desse grupo. Uma experiência reveladora para ele.

"Foi um aprendizado gigante onde tivemos uma troca muito enriquecedora. Revisamos vários temas, como nome social e banheiro, e incluímos mudanças nos contrato para fornecedores, onde agora há uma cláusula que determina a contratação de pessoas do grupo da diversidade, o que inclui os trans."

Homem trans, branco e de barba, usa blusa preta e calça jeans numa foto em que ele está entre luzes, como se fossem espelhos
O assessor de captação e investimentos Theo Linero achou que poderia ser demitido do Banco do Brasil quando decidiu revelar que era um homem trans, em 2017 - Gabriela Biló/Folhapress

Funcionário do banco desde 2010, Linero afirma que optou pela afirmação de gênero em 2017, mas o medo de perder o emprego sempre o rondou.

"É um temor constante. Não é comum para um trans ter a condição e independência financeira que eu tinha e, assim, ter tranquilidade para assumir para sua família sua verdade, correndo o risco de ser expulso de casa. Eu tive a sorte de ser acolhido pela família."

Mas seu dilema era contar no banco. Quando decidiu revelar que ele era trans no trabalho, Theo pensou que seria demitido.

Mas depois de enviar um e-mail a seu chefe direto, foi bem recebido por ele, que afirmou que aquele não era o primeiro caso que ele recebia.

Segundo Mariana Pires Dias, diretora de gestão da cultura e de pessoas do Banco do Brasil, a instituição financeira foi pioneira, em janeiro de 2017, na utilização do nome social, tanto no crachá como em todos os outros meios de interação.

"A gente também usa o banheiro de acordo com a identidade de gênero, temos um atendimento especial para essas pessoas na nossa ouvidoria interna e inclusão de dependentes diretos por união homoafetiva, entre outros benefícios."

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