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Ilha do Bororé, em SP, vira refúgio de amantes da natureza, ciclistas e veganos

No extremo sul de SP, península pode ser acessada por balsas e estrada de terra; sem água encanada e esgoto, moradores reclamam de ausência do poder público

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Imagem de sagui no Parque Natural Municipal Bororé, que fica na Ilha do Bororé, no extremo sul da capital paulista

Sagui no Parque Natural Municipal Bororé, que fica na Ilha do Bororé, no extremo sul da capital paulista Adriano Vizoni/Folhapress

São Paulo

Entre encher a balsa e atravessar um pedaço da represa, o rolê todo não leva dez minutos. Ao pisar em terra firme, rodeada pelas águas da Billings, a sensação que se tem é a de estarmos numa espécie de roça metropolitana, com galinhas ciscando aqui e acolá, plantações de shimeji e pomares apinhados de laranja-melancia. Ainda tomado pela natureza, o lugar preserva uma porção generosa de mata atlântica, onde saguis se deliciam com gafanhotos na hora do lanche.

Há, todavia, outros seres a engrossar o coro, sobretudo aos fins de semana. Podemos dizer que é uma trupe diversa, composta daquela galerinha hipster, tipo Santa Ceciliers e Ipojuquers, ciclistas dos Jardins, trilheiros de natureza (ou "nature lovers") e a discreta turma que vem de todo canto para observar pássaros —os "birdwatchers". Esses se encantam com as notas altas e estridentes do barranqueiro-de-olho-branco.

O nome do lugar parece endossar essa, digamos, viagem: Ilha do Bororé. Na verdade, não é ilha, mas, sim, uma península dentro de uma APA (Área de Proteção Ambiental), localizada nos extremos da zona sul da capital paulista, no distrito do Grajaú. Há uma estrada de terra que liga o bairro à cidade, além de acessos por balsas.

Imagem mostra que a pescaria é uma das atividades procuradas por visitantes da Ilha do Bororé, bairro que pertence ao distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo
Pescaria é uma das atividades procuradas por visitantes da Ilha do Bororé, bairro que pertence ao distrito do Grajaú, zona sul de São Paulo - Adriano Vizoni/Folhapress

Para enaltecer ainda mais essa aura de escapismo, bororé é o nome de uma substância venenosa que alguns grupos originários usavam em flechas, como arma de defesa.

"A Ilha é sensacional. Tem uma ‘vibe’ positiva. Parece que a gente não está em São Paulo", comenta Carlos Gama Naggar, 57, gestor de RH. Carlão, como é conhecido, trouxe um grupo de 43 ciclistas para conhecer Bororé. Eles partiram das alamedas Lorena e Joaquim Eugênio de Lima, nos Jardins. Pedalaram 43 km, passaram por diversos bairros e pararam no mirante da Ilha, para uma pausa acompanhada de comes e bebes —afinal, o grupo se chama Bike’n Beer.

Criado em 2010, o coletivo é bastante inclusivo, explica Carlão. Conta mais ou menos com mil integrantes. São empresários, comerciantes, médicos, dentistas. "O bacana é aceitar a proposta do lugar", diz ele, acostumado a pedalar faz 25 anos.

Foto mostra ciclistas que saíram dos Jardins e foram até a Ilha do Bororé fazem uma pausa em restaurante com vista para a represa Billings, na zona sul da capital paulista
Ciclistas que saíram dos Jardins e foram até a Ilha do Bororé fazem uma pausa em restaurante com vista para a represa Billings, na zona sul da capital paulista - Adriano Vizoni/Folhapress

O bar do Mirante recebe gente de diferentes cantos. "Turistas são 95%", calcula Wanderley Ramos, 45, o Bigode. Na opinião dele, o fato de a balsa ter aumentado, há cerca de dois meses, a capacidade de transporte de 17 para 33 veículos, favoreceu esse boom. "Depois de atravessar a represa, as pessoas se esquecem do lado de lá. É outra atmosfera."

No paraíso, entretanto, nem tudo são flores. Bigode critica a falta de infraestrutura nessa atmosfera dominada por mato e água. Faltam coisas básicas, segue ele, como calçadas. "Esses problemas não são exclusividade da Ilha, mas a falta de zeladoria aqui é gritante."

Há 36 anos no bairro, Anatalia Jesus Rocha Siriano, 58, gosta de dizer que "primeiro vem a obrigação, depois a diversão". Presidente da Amib (Associação de Moradores da Ilha do Bororé), afirma que o turismo precisa chegar de forma organizada, com o mínimo de estrutura. "A água de poço artesiano de muitas casas é contaminada por metais pesados", diz. "Aqui, não existe saneamento básico. Somos desassistidos pelo poder público."

A Prefeitura de São Paulo disse que o problema é do estado. A Sabesp, por sua vez, informou que o município precisa fazer os encaminhamentos para a regularização de uso e ocupação do solo, uma vez que há impeditivos legais para que a estrutura de saneamento seja implantada na Ilha, já que a região também faz parte de área de recuperação de mananciais. De acordo com a empresa, o bairro tem cerca de 80% de seu território coberto por mata atlântica, além de áreas de ocupação irregular.

É bom levar dinheiro vivo porque muitos lugares não aceitam cartão, caso do Armazém do Edinho. O edifício é do final do século 19, calcula o proprietário, Edson Morelli Manzano, 52. Fica em frente a outro monumento histórico da ilha, a capela de São Sebastião, obra em estilo barroco português, cujo ano de inauguração, 1904, está marcado na fachada.

O comércio atravessou gerações. Foi do avô dele, passou pelas mãos de tias, tios, mãe e pai até chegar às suas. "Tem de tudo um pouco", explica Edinho, como é conhecido. "Arroz, feijão, produtos de higiene e, é claro, a cachacinha clássica da ilha: a pinga de cambuci." A dose sai por R$ 3 —abundante na região, o fruto é típico da mata atlântica.

Num ambiente com tantas iguarias, há, entretanto, quem atravesse a balsa só para comer bobó de shimeji (R$ 60), nos almoços da chácara CoguLi, empreitada do casal Ligiane Antunes, 40, e Reginaldo Oliveira, 45. Prato vegano à base de abóbora cabochan, leite de coco, dendê e, por óbvio, shimeji, vem ainda com arroz, farofa de proteína de soja, salada com flores comestíveis e suco de (adivinha?) cambuci.

"Trabalhamos para atrair o turismo consciente à ilha", explica Antunes. Ao lado da cadela caramelo Zoe, 3, o casal de fungicultores também abre as portas da propriedade rural para a hospedagem, com diárias que vão de R$ 80 a R$ 200 (casal, com café manhã) e área de camping (R$ 55). "Recebemos veganos, vegetarianos e pessoas com uma pegada mais ambiental", completa Oliveira.

Lidar com temas que orbitam o universo da preservação é um dos focos dos projetos educacionais da Casa Ecoativa, projeto ocupação cultural em um antigo casarão, que fica ao lado de uma imponente figueira. Sob a sombra dela, crianças se embalam em atividades que promovem o resgate de antigas brincadeiras de rua.

"É só chegar", avisa Emerson Ribeiro, 37, o Emerson Bororé, ator e um dos coordenadores do espaço. Brincar de pique-esconde, subir em árvores e usar o barro da terra como tinta são ações que despertam o lado lúdico, "reacendendo o vínculo com a mãe-terra", explica ele.

Hoje aposentado, o pai dele trabalhou na balsa por 25 anos. "Ela é o que nos diferencia. Literalmente, é um divisor de águas." Podemos dizer que em diferentes aspectos: na Ilha não há posto de gasolina nem açougue, tampouco farmácia, apenas pequenas mercearias. Precisa atravessar a represa para comprar quase tudo do lado de lá.

Essa movimentação pode ser trabalhosa para alguns, mas já está incorporada ao hábito dos "bororenses". "Há aqueles que defendem a construção de uma ponte", diz o rapaz. "Sou contra. A Ilha do Bororé só é como é graças à balsa."

Com as unhas entranhadas de terra de tanto, nas palavras dela, "cutucar o chão, mexer na terra", Maria Eduarda e Silva, 31, designer, caminhava às margens da Billings, perto do atracadouro. Tirou o domingo para curtir a mata. "São Paulo é uma cidade de contrastes", afirmou. "De todos os tipos imagináveis."

Ela planeja voltar à ilha para conhecer o Parque Natural Municipal Bororé, área criada como compensação ambiental por causa do Rodoanel Sul. "Nossa esperança está na natureza", disse ela, instantes antes de encarar o trajeto que a levaria de volta à selva de concreto e asfalto.

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