Descrição de chapéu The New York Times

Ela é a pessoa mais velha da Amazônia?

Trajetória de Varî Vãti Marubo mostra o quanto a vida mudou para as aldeias indígenas da floresta tropical — e o quanto ela permaneceu a mesma

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Jack Nicas
Vale do Javari (AM) | The New York Times

Com mais de 100 anos vividos na floresta tropical, Varî Vãti Marubo caminha com a ajuda de uma vara e, como sempre, descalça.

Por isso, neste ano, quando seu povo indígena Marubo marcou reuniões em uma aldeia em que, para chegar, exigiria uma caminhada de 20 quilômetros atravessando riachos, troncos caídos e a floresta densa, todos sabiam que seria difícil para ela participar.

A imagem mostra uma mulher idosa sentada em meio à floresta amazônica. Ela tem cabelos longos e grisalhos, e veste uma blusa estampada com flores e calças azuis. A expressão em seu rosto é contemplativa, com a mão direita apoiando o queixo e o cotovelo esquerdo repousando em seu joelho. Ao fundo, a densa vegetação da floresta tropical é visível, com árvores altas e folhagens verdes, criando um ambiente natural e sereno.
Varî Vãti Marubo, que é provavelmente uma das pessoas mais velhas ainda vivendo nas profundezas da floresta amazônica, no Território Indígena Marubo, no estado do Acre, Brasil, em 9 de abril de 2024 - Victor Moriyama/The New York Times

Mas, como faz há um século, Varî Vãti se adaptou à situação. Ela pegou carona no único meio de transporte disponível: as costas de seu filho.

"Tome cuidado comigo!", ela gritou para o filho, Tama Txano Marubo (todos os marubos usam o mesmo sobrenome), enquanto ele descia um barranco lamacento com um facão na mão e a mãe nas costas. O peso da idosa esticava um tecido azul ancorado na testa do filho. "Chamem um caminhão para vir me buscar!", gritou ela para parentes que riam. "Isso é demais".

Mas ela acabou conseguindo chegar.

Além de ser a pessoa mais velha das aldeias Marubo, que reúnem mais de 2.000 membros, Varî Vãti é provavelmente uma das mais velhas a habitar as profundezas da floresta amazônica. Seu documento de identidade, baseado em uma estimativa de um antropólogo, diz que ela completará 107 anos em setembro, mas sua família acredita que ela tenha ainda mais. Outros membros Marubo acreditam que ela tem mais de 120 anos.

Maria Lucimar Pereira Kaxinawá, do povo Huni Kuin, tinha 131 anos, de acordo com seu documento oficial, quando morreu em 2022. Se essa idade for exata, ela teria sido a pessoa mais velha do mundo. Pesquisadores atribuíram a longevidade de alguns povos indígenas da Amazônia, apesar do ambiente às vezes inóspito, a seus estilos de vida ativos e suas dietas naturais.

Varî Vãti faz parte de um grupo de anciãos indígenas que ajudaram a preservar a cultura e os costumes de seu povo diante das profundas mudanças e dos desafios dentro e fora de seu lar na floresta.

O arco de vida de Varî Vãti acompanhou um século de transformações para os povos indígenas da Amazônia, período no qual muitos enfrentaram novos contatos com pessoas de fora das aldeias e com suas tecnologias, assim como uma vasta destruição da floresta.

No entanto, sua rotina diária mostra como alguns grupos indígenas conseguiram preservar um modo de vida que ainda se assemelha ao de seus ancestrais.

Varî Vãti passou a vida toda em um dos lugares mais isolados do planeta, cercada por quilômetros de floresta em todas as direções. Ela dormia em uma rede dentro de uma maloca, cabana comunitária de 15 metros de altura onde os Marubo cozinham, comem e dormem juntos.

Ela produzia joias e roupas com materiais da floresta, incluindo algodão, sementes e dentes de animais. E cozinhava pratos tradicionais em uma fogueira, incluindo mingau de banana, lagarto assado e ovas de peixe embrulhadas em folhas de bananeira.

Varî Vãti também se lembra de uma época, ainda criança, em que avistar uma pessoa branca podia levar seu povo a se esconder. Mas hoje, cada vez mais indígenas Marubo vivem fora da Amazônia. Eles falam e estudam em português, e alguns se tornaram advogados e engenheiros, ativistas e acadêmicos. A geração Marubo mais jovem –conectada em suas aldeias remotas por meio do serviço de internet Starlink, de Elon Musk– está no TikTok.

"Desde que nascemos, mantivemos vivas as tradições. Mas agora vejo que está tudo mudando", disse Varî Vãti em seu idioma nativo, falado por apenas alguns milhares de pessoas. "Muitos jovens esqueceram a sabedoria dos mais velhos".

Ela disse que entende a busca por novos conhecimentos, mas também se preocupa que a migração para a cidade possa apagar a cultura criada nas aldeias. "Gosto de estar na floresta, estar em paz e em harmonia", disse ela. "Acordar com a brisa do amanhecer, pescar peixes gostosos. Tudo isso me faz sentir viva".

Varî Vãti tem uma presença calma. Ela se move lentamente e ouve com atenção. Usa vestidos florais e várias joias Marubo, feitas de cascas de coco e conchas de caracol, incluindo algumas que são enroladas em suas orelhas e presas a um piercing em seu nariz. Seu cabelo é espesso e apenas parcialmente grisalho.

Sua idade exata não está clara. Por gerações, grupos indígenas dessa região não registram o passar dos anos da mesma forma que nas culturas ocidentais. Portanto, estimar a idade geralmente requer pistas. Uma das lembranças mais claras da infância de Varî Vãti é a visita ao assentamento branco mais próximo, Cruzeiro do Sul.

"Não havia muitas casas", disse ela. "Havia muitas árvores". Cruzeiro do Sul, hoje uma cidade de 92 mil habitantes, foi fundada em 1904. Fotos daquele período parecem coincidir com suas descrições, segundo sua família.

Os Marubo tiveram seu primeiro contato com pessoas de fora no final do século 19, quando seringueiros entraram em suas terras na Amazônia brasileira, localizada próxima à fronteira com o Peru. "Quando vimos os brancos, ficamos com muito medo", disse Varî Vãti. "Nossos remédios só curavam nossas doenças, não as doenças desconhecidas de fora".

Muitos Marubo morreram —de doenças e violência. Varî Vãti devia ter por volta de 20 anos na Segunda Guerra Mundial, mas, quando lhe perguntaram, ela não tinha ouvido falar do fato histórico. "A única guerra que presenciei foi a dos peruanos contra os povos indígenas", disse ela.

Varî Vãti, filha de um ex-cacique Marubo, casou-se três vezes e teve nove filhos— o mais velho tem hoje quase 90 anos. Seu primeiro marido a abandonou. O segundo foi assassinado, segundo a família. E o terceiro acabou se casando com a sobrinha de Varî Vãti e vive em outra aldeia. (Na cultura Marubo, os homens podem se casar com várias mulheres, mas as mulheres só podem se casar com um homem).

Os Marubo vivem coletivamente. Todos da aldeia têm responsabilidades, desde a agricultura, a caça, a culinária e a limpeza, e todos compartilham a comida das mesmas tigelas.

Também há papéis de gênero claros –e privilégios. Os homens caçam, e as mulheres cozinham. Os homens comem com garfos e colheres em uma extremidade da maloca, sentados em troncos. As mulheres comem com as mãos na outra extremidade, sentadas em esteiras feitas de folhas de palmeira. Os homens tomam ayahuasca, bebida psicodélica feita de uma planta amazônica, para se conectar com os espíritos; as mulheres não podem tomá-la.

Vários Marubo lamentam a desigualdade. Varî Vãti diz que a vida era assim. Mas seu povo elegeu recentemente a primeira mulher a integrar a liderança local e está começando sua primeira associação de mulheres.

Em uma série de reuniões este ano, que fazem parte de encontros regulares do povo para tratar de problemas e discutir novos planos, Varî Vãti se levantou para falar. Quase todos pararam para ouvi-la.

"Não vamos nos concentrar em conflitos ou ódio, mas em um bem coletivo, no que é melhor para nosso povo, em viver em paz e harmonia", disse ela, apoiando-se no filho para ficar de pé. "Somos indígenas. Não podemos viver como não indígenas".

Ela acrescentou que estava feliz por ter tido a chance de falar ao povo. "Não estarei aqui para sempre", disse ela. "E tenho medo de que vocês se percam no futuro".

Varî Vãti guarda parte dos conhecimentos mais profundos dos Marubo sobre culinária, plantas medicinais, tecelagem de algodão e pintura corporal, disse sua nora, Raimunda.

"Esses anciãos da aldeia são a biblioteca da floresta", disse Raimunda. "Quando eles morrem, parte de seu conhecimento também se vai, porque não é fácil passá-lo adiante".

No caminho de volta, depois das reuniões, Varî Vãti e sua família pararam para descansar. Ela se sentou em um tronco, agachada, com a cabeça entre as mãos. Ela espantou moscas que rondavam uma ferida em seu pé.

Seu filho, Sebastião, que passa alguns meses do ano em Cruzeiro do Sul, disse que tenta incentivar a mãe a se cuidar melhor, inclusive usando chinelos e tomando mais remédios ocidentais. Mas ela resiste.

"Ela está sempre dizendo: ‘Quem cuida de nós é a floresta’", disse ele. "‘Os espíritos da floresta. Não precisamos nos preocupar’".

Esta reportagem foi publicada originalmente aqui.

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