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Por melhor que seja a intenção, 'fake news do bem' também são desinformação

Situações que despertam muitas emoções, como a do coronavírus, podem agravar a desinformação; compartilhar mentira para atender um bem maior também mina credibilidade

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Perda da aposentadoria, multas e até mesmo prisão. Estas foram algumas das muitas ameaças feitas aos idosos que estivessem circulando pelas ruas nos últimos dias —todas elas falsas.

Em meio à pandemia do coronavírus, não faltam exemplos dessa categoria de desinformação: a suposta “fake news do bem”.

Com a desculpa de que a mentira atende a um bem maior (como proteger nossos familiares que estão no grupo de risco), muitos podem ter compartilhado a desinformação. Não deixa de ser tentador.

Mas qual a relação que estamos construindo com as pessoas queridas com quem dividimos uma informação falsa? Como fica nossa credibilidade quando elas descobrirem que foram enganadas? Como faremos para que voltem a acreditar em nós?

É preciso deixar claro: não existem “fakes news do bem”. Por melhor que seja a intenção, nossa comunicação não pode ser baseada em inverdades, pois há um risco nada desprezível de perda de controle.

O assunto é ainda mais sensível quando pensamos na população alvo da desinformação. Os idosos são justamente os mais propensos a passar adiante conteúdos falsos na internet, o que significa que é gigantesca a chance de uma postagem como a que falava sobre o fim da aposentadoria viralizar e causar muita confusão e até desespero.

Uma pesquisa feita nos Estados Unidos há alguns anos mostrou que usuários de redes sociais com mais de 65 anos compartilhavam sete vezes mais informações falsas do que o grupo mais jovem (com idade entre 18 e 29 anos). Nossos avós cresceram num mundo pouco ou quase nada conectado.

Apenas alguns jornais ou emissoras de rádio e TV tinham condições de se comunicar com muitas pessoas ao mesmo tempo. Essa situação fez com que se acostumassem a confiar em praticamente tudo o que chegava até eles.

Agora, a situação é completamente diferente. Numa era em que todos se comunicam com todos a todo instante, precisamos desenvolver um olhar mais reflexivo com a informação, adicionando uma leve pitada de desconfiança.

E é justamente nessa “receita” que crianças e jovens têm um papel fundamental. Eles podem ser agentes de transformação de suas famílias.

Se a escola, remota ou presencialmente, ajudá-los a desenvolver as habilidades de leitura crítica da informação, a comunidade toda pode se beneficiar. Em casa, os alunos podem tornar-se os professores de seus avós ou mesmo pais, alertando-os sobre os perigos da desinformação.

Há inúmeros exemplos de supostas “fake news do bem” —que podem ser exploradas nas aulas e nos debates com os alunos.

No ano passado, várias personalidades internacionais fizeram alertas sobre as queimadas que atingiram a Amazônia. Algumas delas, no entanto, acabaram usando fotos antigas ou mesmo de outras localidades em seus posts nas redes sociais.

Um dos casos mais emblemáticos foi o do presidente francês, Emmanuel Macron, que usou uma imagem clicada por um fotojornalista da National Geographic que morreu em 2003 —muito antes, portanto, dos incêndios de 2019.

Ainda que a motivação para as postagens tenha sido positiva (chamar a atenção do mundo para um problema grave), o uso de uma imagem fora de contexto acabou roubando a cena e dando margem para discussões políticas que nada contribuíram para o meio ambiente.

Algo semelhante aconteceu após o rompimento da barragem de rejeitos em Brumadinho (MG). A tragédia gerou forte mobilização nas redes sociais e também houve quem escorregasse na desinformação.

Um dos posts que foi amplamente compartilhado mostrava a fotografia de um bombeiro abraçado a uma pessoa suja de lama, junto a mensagens de solidariedade para as equipes de resgate e para as vítimas.

Apesar da boa intenção, é preciso refletir que a imagem não tinha qualquer relação com o episódio. A foto era bem mais antiga, de 2011, e flagrava o resgate de um agricultor que ficou preso em uma cisterna em Patos de Minas (também em MG).

O trabalho de “desvendar” as inverdades na internet tem sido feito, rotineiramente, por jornalistas especializados na checagem de fatos (fact checking, no jargão em inglês). Mas, ainda que nem todos tenham as mesmas ferramentas e treinamento, é importante que a sociedade, de forma geral, adote uma postura mais reflexiva diantes das mensagens que chegam e, principalmente, atue com responsabilidade ao criar algum tipo de conteúdo.

Há muitas maneiras de disseminar o bem que não precisam de qualquer empurrãozinho fake.

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