'Ele fingia me examinar com os dedos na minha vagina', diz porta-voz da campanha #OndeDói

Plataforma estimula mulheres a compartilhar experiências de violência sexual na área da saúde e oferece apoio psicológico e jurídico

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São Paulo

Nina Marqueti, 28, vestia o uniforme da escola quando foi sexualmente abusada pelo pediatra de confiança da família, em 2008.

A atriz tinha 16 anos quando o médico especialista em gastroenterologia —especialidade que se ocupa do aparelho digestivo— abaixou sua calça e sua calcinha. Em seguida, apalpou sua vagina, dizendo que fazia parte do procedimento.

Nascida em uma família humilde de Umuarama, no interior do Paraná, Nina aprendeu que médicos eram autoridades que não deveriam ser questionadas.

"Ele o tempo todo fingia que estava me examinando, é isso que coloca a gente em situação de vulnerabilidade. Ele agia como se me examinasse, mas colocava os dedos dentro da minha vagina", conta. "Me vi congelada, comecei a sentir dor, mas não falei nada para ele. Lembro exatamente desse conflito mental. Ele ficava perguntando 'onde dói?'"

Foi a pergunta repetida pelo pediatra que originou o nome da campanha lançada nesta segunda-feira (9) por uma coalizão de coletivos feministas, entre eles o Mulheres da Resistência no Exterior, do qual Nina faz parte.

Com a ajuda da líder Luciana Kornalewski e de outras companheiras do coletivo, transformou o trauma em uma plataforma que estimula outras mulheres a compartilhar seus casos e oferece a elas ajuda jurídica e psicológica.

A #OndeDói já alcançou milhares de mulheres que passaram por situações de violência sexual ou psicológica durante atendimento médico. Só no Twitter, foram mais de 1.800 depoimentos coletados, além de outros tweets em apoio à campanha.

A ideia da campanha partiu da história de Nina, que ela mesma contou publicamente pela primeira vez em sua peça "A Flor da Matriarca", em cartaz em Nova York, onde vive hoje. 

A peça, que conta com um testemunho inspirado no de Christine Ford, só foi escrita dez anos depois do ocorrido durante a consulta. 

A atriz passou todo esse tempo tentando se convencer de que não havia sido nada de mais, que era coisa da sua cabeça. Mas, ao mesmo tempo, tinha crises de ansiedade, desenvolveu depressão e tinha dificuldade de se relacionar sexualmente.

"Percebi que esse trauma era uma linha que costurava tudo que eu produzi", diz a atriz. Quando tomou consciência de que o trauma quase a havia matado, passou a se sentir desconfortável ao não fazer nada e permanecer em silêncio, sem denunciar.

A peça chegou aos ouvidos da correspondente internacional da Record, Heloisa Villela, que com a permissão de Nina passou o nome do médico, Allessio Fiore Sandri, para a equipe de jornalismo investigativo. Um mês depois, sete vítimas de Sandri já haviam sido encontradas.

E com a campanha o número só aumentou: em três dias de #OndeDói no ar, outras quatro pessoas entraram em contato com a atriz revelando que também foram abusadas pelo pediatra de Umuarama.

Fora Sandri, outros médicos brasileiros já tiveram seus nomes revelados por vítimas que buscaram ajuda psicológica e jurídica por meio da campanha. 

Além da hashtag, a plataforma mapeia casos de violência sexual cometida por profissionais da saúde, oferece um formulário para que mulheres contem pelo que passaram e reúne organizações de apoio psicológico, jurídico e de acolhimento.

Para Nina, é preciso cuidar das vítimas que vêm até o coletivo, por isso o acolhimento é fundamental.

"O mais importante para mim foi quando eu percebi que não estava sozinha", diz. "Ajuda psicológica e orientação jurídica é coisa pra quem tem dinheiro, mas eu quero que essas pessoas saibam que elas podem conseguir isso também. Temos que democratizar esses serviços."

influenciadoras

Algo que tem impulsionado a campanha e estimulado as denúncias, ainda que online, é a divulgação por parte de influenciadoras. Algumas até compartilharam casos que vivenciaram, como Krishna Sousa, 24.

A influenciadora nunca tinha falado publicamente sobre as situações que compartilhou com seus mais de 100 mil seguidores. Para ela, eram coisas que aconteceram e das quais se lembrava, mas nunca tinha dado peso e importância até conhecer a campanha.

"Eu me toquei que aquilo já tinha rolado comigo e era coisa séria, então decidi compartilhar", afirma. 

Quando foi ao ginecologista pela primeira vez depois de perder a virgindade, ele a mandou tirar a roupa em sua frente e, não sabendo como deveria ser, obedeceu.

"Ele sabia que era minha primeira vez ali, numa situação como aquela", diz. Além do que contou no tweet, o médico comentou que os seios de Krishna eram muito caídos, fala que não correspondia com o motivo da consulta.

Ela aponta que a vulnerabilidade é ainda maior quando não se tem referências sobre o procedimento médico: é preciso saber o profissional pode ou não fazer.

Nalü Romano, 22, é escritora, humorista, influenciadora digital e integrante do Mulheres da Resistência no Exterior. Ela trabalhou na organização da campanha e segue divulgando em suas redes sociais.

"Não adianta nada ter gente que nos chama de influenciador, influenciador de quem? Podemos ser um portal, porta-vozes de assuntos importantes", afirma. "É mais do que nosso dever, como gratidão às pessoas que nos seguem, usar a visibilidade para fazer a diferença."

Ela conta também que, durante a articulação da campanha, as Mulheres da Resistência tomaram todo o cuidado necessário para que os depoimentos estimulados pela hashtag não fossem apenas uma exposição, mas sim uma solução. Por isso a importância da colaboração de psicólogas, advogadas, médicas e outras profissionais na campanha.

Além das parcerias, o desenvolvimento de uma cartilha também foi uma estratégia articulada para alcançar a conscientização das mulheres a respeito desse tipo de violência.

"Falta educação, falta informação sobre isso, por isso temos esse projeto da cartilha", explica Nalü. O objetivo é instruir meninas adolescentes, que são a maioria dos casos. "Precisamos dessa educação para que uma menina adolescente saiba quais são os direitos dela numa primeira consulta ao ginecologista."

Essa cartilha será disponibilizada gratuitamente na plataforma em fevereiro. A proposta é orientar a população feminina sobre seus direitos de paciente. 

O material também vai ilustrar formas de como essa violência se apresenta, como lidar com cada uma delas e como denunciar, explicando também os tipos de crimes sexuais que a lei entende na área da saúde. 

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