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Os primeiros 60 dias de Covid-19 no Brasil

Tendências em filantropia, investimento social e o campo de impacto social durante a pandemia

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Cássio Aoqui Rachel Añón Vanessa Prata

No último domingo (26), completamos exatos60 dias desde que o Ministério da Saúde confirmou o primeiro caso de pessoa infectada com a Covid-19 no Brasil.

Desde 26 de fevereiro, e mesmo antes, quando a doença impactava apenas outros países, centenas de iniciativas no combate ao vírus vêm emergindo das formas mais variadas em todo o país.

Ao mesmo tempo, o fluxo de informações, solicitações e propostas de ações ganharam velocidade e dimensão exponenciais, principalmente pela facilidade de disseminação pelo WhatsApp, acarretando como paradoxo a dificuldade de estabelecer uma relação de ajuda genuína e eficaz no enfrentamento da pandemia.

​Na semana em que se iniciou outra contagem no Brasil —a de vítimas fatais—, sentindo a necessidade de organizar dados e ter uma visão mais sistêmica dessas iniciativas, nós da ponteAponte começamos a mapear voluntariamente ações para apoiar os envolvidos no direcionamento de esforços e recursos aportados.

Nascia em 23 de março o Mapeamento de iniciativas contra a Covid-19, hoje com cerca de 450 ações levantadas colaborativamente, entre campanhas de doações em dinheiro, plataformas online diversas, campanhas solidárias em geral, iniciativas de auxílio médico e psicológico, listas de cursos, livros e filmes gratuitos e notícias sobre as periferias brasileiras.

Até o momento, foram 1.250 acessos únicos de investidores sociais, filantropos e organizações de base comunitárias em geral.

Mas não paramos por aí. Colocamos como meta analisar a primeira fase dessa experiência com o objetivo de gerar inteligência coletiva para o campo a partir de evidências e informações relevantes no que tange a investimento social privado, filantropia, chamadas públicas (editais, desafios etc.) e comunicação. Essa análise se transformou no relatório Os primeiros 60 dias de Covid-19 no Brasil – tendências em filantropia, investimento social e o campo de impacto social[VDP1] .

Compartilhamos um recorte do que descobrimos no que tange ao investimento social privado a partir de 260 iniciativas mapeadas até 20 de abril e estudadas individualmente.

Principais ações

Parte do setor defilantropia e investimento social moveu-se rapidamente, liderada principalmente por atores já protagonistas do campo e organizações como institutos e fundações com experiência em contextos periféricos para arrecadação de dinheiro e produtos (alimentos, kits de higiene etc.).

Surgiram assim campanhas cada vez mais articuladas, como o pioneiro União SP, o Movimento União Rio, além de Família Apoia Família e Enfrente, envolvendo diversos atores como Instituto Península, Instituto Phi, Instituto ACP, Fundação Tide Setubal e uma rede de parceiros, muitos dos quais periféricos, com destaque para a CUFA (Central Única das Favelas).

Outros, contudo, tomaram a decisão de estruturar suas iniciativas emergenciais de investimento social a partir dos movimentos iniciais do setor com uma análise mínima do cenário. Foi o caso do Instituto Jatobás, que após consulta a rede e parceiros lançou o Enfrentamento Crise Covid-19, um arranjo que envolve geração de renda, inclusão produtiva e empreendedorismo cultural, e da Fundação André e Lucia Maggi com o Fundo Um Por Todos e Todos Contra a Covid-19 para atuar no Amazonas, Mato Grosso e Roraima, onde estão sediados.

Entre as empresas, em termos de investimento social, o movimento ganhou força na última semana de março e sobretudo a partir de abril, quando dezenas passaram a oferecer apoio financeiro, infraestrutura e apoio logístico –para muitos o primeiro passo, ultrapassando R$ 3 bilhões doados em grande parte graças a esse setor, como aponta o Monitor de Doações da ABCR.

Algumas empresas optaram por centralizar esforços em articulações dentro de casa. A EDP lançou o edital EDP Solidária Covid-19, articulando os negócios do grupo (EDP, EDP Renováveis e Instituto EDP), e o CCP lançou pelo Instituto a ação Seja Solidário sem Sair de Casa, um matchfunding triplo para o entorno dos seis shoppings que administra, em uma articulação peculiar: funcionários e parceiros mobilizaram doações, o instituto duplicou a arrecadação, e os sócios majoritários da empresa triplicaram o valor inicial.

Como era esperado, empresas que atuam no B2C, como Burger King e Magazine Luiza, foram as primeiras a anunciarem seus aportes, ainda no mês de março (na página Pacto contra a Covid-19, do Pacto Global, encontra-se uma lista abrangente e atualizada). Vale ressaltar que algumas grandes empresas que lançaram iniciativas de apoio não têm historicamente atuação nesse sentido, o que denota preocupação junto ao consumidor.

Boa parte das iniciativas reflete as já conhecidas culturas institucionais. A Ambev, por exemplo, moveu-se rapidamente e anunciou amplamente a produção e distribuição de álcool gel em 17 de março.

Sua concorrente direta de setor, a Coca-Cola, focou de início na segurança dos colaboradores para então divulgar em uma ação mundial de US$ 120 milhões o site https://estamosnessajuntos.com.br/ em 31 de março. Ambas as contribuições, porém, são relevantes, cada qual no seu tempo e com níveis de complexidade e estruturação diferentes.

Diversos intermediários desenvolvedores do campo tomaram a dianteira nas articulações e apresentaram papel de destaque nos primeiros 60 dias. O Pacto pela Democracia articulou variadas ações, notas de repúdio e conferências multissetoriais; a ABCR encampou o Monitor de Doações; membros do Movimento pela Cultura de Doação estruturaram algumas das campanhas mais bem sucedidas e lançaram uma edição extra do Dia de Doar, que acontecerá em 5 de maio. Por último, Rede Brasil do Pacto Global articulou um coletivo de empresas e lançou o Covid Radar, do qual somos curadores na frente Conexão Radar.

Há um dinamismo entre as plataformas online das mais diversas naturezas (arrecadação coletiva, georreferenciamento de casos, informações técnicas etc.), lançadas ou adaptadas para o cenário atual. Enquanto algumas já entraram em desuso desde a sua criação, principalmente dada a dificuldade de manutenção e monitoramento, outras seguem em funcionamento, como o #MapaCoronaNasPeriferias, do Favela em Pauta e Instituto Marielle Franco.

Consultorias e plataformas variadas também passaram a trabalhar com taxas reduzidas ou mesmo voluntariamente aconselhar investidores em matchmaking e realizar análises e gerar relatórios de inteligência.

Próximos passos

Quase dois meses após a chegada da doença ao país, há uma diminuição no ritmo de novas iniciativas de investimento social sendo criadas no Sudeste, ocorrendo uma maior concentração e coordenação de esforços (por exemplo, centralizando novas campanhas ou até mesmo unindo as que estavam independentes em uma mesma plataforma).

Trata-se de um movimento bem-vindo: na terça-feira (21), cerca de um mês após o início do mapeamento, havia 270 iniciativas em nossa planilha --a maioria das novas entradas referentes a campanhas comunitárias, oriundas principalmente de associações de base e coletivos, e não de investimento social.

Para ampliar o alcance, é essencial planejar a distribuição geográfica das ações, ainda concentradas em SP e no RJ, bem como dentro dos próprios municípios, tendo cuidado com a já identificada concentração dos recursos em determinadas regiões, organizações e/ou lideranças (em parte justificada pelas parcerias preexistentes e de confiança e a presença de organizações consolidadas, entre outros fatores).

Um bom parâmetro é priorizar bairros e distritos onde há maior número de casos de infecção e fatalidades (como a Vila Brasilândia, na zona norte; Sapopemba, no sudeste; e Vila Rasa, São Mateus e Cidade Tiradentes, na leste).

Dada a urgência e o tempo de criação e efetivação desses investimentos sociais, fica o imenso desafio de se estruturarem todas essas iniciativas da maneira mais eficiente e eficaz possível, além de transparente e coordenada, equilibrando agilidade e qualidade. Muitos dos anúncios de grandes empresas, por exemplo, ainda não foram seguidos de informações concretas acerca de quem receberá os apoios ofertados e de que forma e quando eles acontecerão.

Ainda vemos bastante espaço para os investidores sociais privados atuarem com maior ênfase na que deve se consolidar como fase de pico de disseminação do vírus no país –que ainda não se manifestaram nesse sentido.

Para esse grupo, reiteramos a importância de atuar ao lado das comunidades e OSCs com as quais já trabalha, bem como em parceria com outros institutos, fundações, empresas e desenvolvedores do campo, entre outras recomendações, que podem ser acessadas no relatório.

Cássio Aoqui

Mestre em administração pela Universidade de São Paulo e professor de empreendedorismo social e negócios de impacto da Fundação Instituto de Administração, é diretor-executivo da ponteAponte. Foi jornalista da Folha entre 1999 e 2010.

Rachel Añón

Pós-graduada em negócios socioambientais, relações internacionais e meio ambiente e sociedade, além de bacharel em comunicação social e história, é diretora de alianças da ponteAponte. Foi jornalista da Folha entre 1999 e 2010.

Vanessa Prata

Diretora de projetos e comunicação da ponteAponte, é mestre em letras pela Universidade de São Paulo e especialista em tradução e bacharel em comunicação social pela Faculdade Cásper Líbero

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